Entremez

O dono da bola

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

07 de Dezembro de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Fui dono de uma bola de couro oficial. Alguém que desconhecia os meus talentos resolveu me dar esse presente de aniversário, quando eu era menino. O dono da bola é um cara de prestígio, joga todas as partidas e até escolhe o time. Fui exceção entre os moleques de rua, todos preferiam não brincar com a minha bola a permitir que eu jogasse com eles. Bullying? Nada disso, o motivo verdadeiro era eu ser muito ruim, não chutava, não driblava, fazia gol contra e cometia faltas nos companheiros de time.  

Quando tinha sete anos levei uma bolada no olho direito, sofri lesão na córnea, que me acompanha até hoje. Minha mãe fez promessa com Santa Luzia para eu não perder a vista. Nunca paguei a promessa e acho que por isso tenho a visão complicada. 

Terá sido culpa da mártir, a que arrancou os próprios olhos e foi decapitada por conta de sua fé em Cristo? Não, de jeito nenhum, o negligente fui eu mesmo. Mamãe prometeu comprar a imagem da santa milagrosa e preferi roubá-la no santuário de uma tia avó, também sofredora da vista. Depois do roubo, as más línguas falaram que a pobre velhinha ficou cega. Lá no alto do céu não consideraram a promessa quitada. Ainda sofro dos olhos e, na família, todos me julgam um ladrão de antiguidades. 

Não sei se por conta da bolada ou do sacrilégio religioso, tornei-me um fracasso em assunto de futebol. Faltou-me vocação para a maior cultura do povo brasileiro. Naquele tempo ainda não se falava nerd, mas sempre fui um sujeitinho aferrado aos livros, à música, ao cinema, ao teatro, e gastava as horas estudando. Nunca me revelei nas brincadeiras de pião, bola de gude, pingue-pongue, barra bandeira, não aprendi a empinar pipa, nadava mal e não sabia montar os pangarés da fazenda dos tios e da avó. Para desgosto do pai tornei-me uma vergonha em qualquer modalidade de esporte. 

O time de futebol da minha cidade se chamava Magarefe, os jogadores eram açougueiros e batiam bola aos domingos, num campo próximo à rua onde eu morava. No final da tarde, já escurecendo, eles retornavam das pelejas calçando chuteiras, sem as camisas dos ternos, suando e fedendo mal como as carnes podres que vendiam no açougue. Desfilavam pela calçada, feios e barulhentos, proferindo insultos e palavrões. O mal cheiro impregnou-se em minha memória e nunca consegui dissociá-lo do futebol. 

Se busco compreender os meus entraves futebolísticos à luz da psicanálise, concluo que os devo aos sentidos da visão e do olfato. Eles foram agredidos pelos jogadores feios, sujos, barulhentos, grosseiros e malcheirosos. Trata-se de motivo bem mais relevante do que a cartilha de esquerda dos anos de ditadura militar, quando éramos instruídos a não torcer pela seleção brasileira, num evidente patrulhamento. 

Vocês não imaginam o que sofri na Copa de 1970, morrendo de vontade de assistir aos jogos na tevê em preto e branco da vizinha, mas instruído a não cair na tentação fascista, pois o Mundial se tornara um instrumento de propaganda dos militares. 

O futebol também se misturou com as coisas do céu, as rezas, as velas acesas e uma imagem em porcelana de Nossa Senhora Aparecida, que ganhei de uma tia na primeira comunhão. A padroeira do Brasil ocupava o seu lugar de honra em cima de um rádio Philips comprado pelo pai, quando ainda morávamos no sertão. Na euforia de um gol, a santa caiu do seu posto e espatifou-se em mil cacos. Pobrezinha. 

Chegado aos 70 anos, resolvi os meus conflitos com o futebol, a bola e os Mundiais. As pessoas me cobravam ser um torcedor, morrer por um time, vestir verde e amarelo durante a Copa e assistir aos jogos enturmado, bebendo cerveja e roendo as unhas dos pés. Não torço por nenhuma seleção e não sofro ansiedade pelos resultados. Gosto de ouvir os fogos, os gritos, e me comovo com a euforia das pessoas. Participei com alguns argentinos de uma mesa sobre futebol, na Alemanha. Não abri a boca, só fiz rir. 

Não cobro de ninguém que se comova assistindo ao filme turco Quatro gerações, um longa-metragem de duas horas e meia, que parece durar quinze minutos, tão emocionante ele é. Não alicio os amigos para o culto a Tarkovsky, um cineasta russo. Não tento os inimigos dos livros a lerem as dezenas de escritores que leio e releio num verdadeiro ato de fé. Alguém acredita que se possa perder o sono depois de ler o ensaio de Edmund Wilson sobre o simbolismo? Eu perdi. 

Estamos quites torcedores brasileiros. Não cobro nada de vocês. Mas também não reclamem por eu ter dormido durante o tedioso jogo entre o Brasil e a Suíça, em que nem o Pombo Richarlison conseguiu me empolgar com seus arrulhos.   

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