Ilustração Rafael Olinto
Eu seria o que se chama um menino corajoso? Ou apenas um atrevido, desgarrado do controle dos pais? Acho que as duas coisas. Não se educa fácil um lote de oito filhos, numa casa sertaneja em que também moravam mais três sobrinhos, um tio e duas empregadas. Vivia-se solto, como Deus criou batata, por mais que pai e mãe tentassem manter as rédeas presas.
Foi a empregada de nossa casa no Crato, a filha de um cabo de polícia, quem me levou para ver o enforcado no porão da cadeia. Didático conduzir uma criança de sete para oito anos à penitenciária pública, descer com ela vãos de escada até alcançar um subterrâneo e, simplesmente, ordenar:
– Olha!
Olhei o homem determinado a morrer, as pernas encolhidas porque não havia altura bastante para o corpo ficar suspenso. Roxo pela sufocação, a língua de fora, os olhos esbugalhados.
– Olha, menino!
Hoje me pergunto se ele enforcou-se ou foi executado. Naquele tempo eu não fazia essas perguntas.
Quando me levaram para ver o Pai da Mata, havia um clima de festa em frente à cadeia. O crime era bobo. Um homem se perdera na floresta de Caririaçu e ficou vagando durante anos. Sobrevivia comendo frutos, raízes, castanhas, caças, e roubando animais de rebanhos. Quando os criadores se queixaram, começou a procura do ermitão carnívoro. A floresta era grande e durante muito tempo o predador não foi encontrado. Até que o acharam.
Amarrado com cordas sobre a carroceria de um camião, foi exposto um dia inteiro. Os cabelos eram grandes e emaranhados, a barba alcançava o peito. Baixo e forte, tinha a pele queimada de sol. Não esboçava nenhuma resistência, apenas sorria abobalhado. Não sei que fim levou. Lembrei o acontecimento quando assisti ao filme O enigma de Kaspar Hauser, de Herzog.
O outro assombro aconteceu quando eu cursava a primeira série ginasial. Durante mais de uma semana as rádios comentaram o desaparecimento de uma mulher. Ela tinha saído de sua casa no Exu, de carro, com destino ao Crato. Finalmente encontraram o corpo em meio à floresta da Chapada do Araripe. Estava despido, queimado e parcialmente devorado pelos urubus. No dia seguinte ao aparecimento, eu ia de manhã bem cedo para o colégio, com meu irmão e um primo.
– O cadáver da mulher está no cemitério, disseram. Quem tem coragem de olhar?
– Eu tenho, falei.
Duvidaram. O colégio ficava bem perto do necrotério e desviamos o caminho da aula. Chegamos, meu irmão falou ao coveiro que eu queria ver a morta. O homem riu perverso, pediu que eu confirmasse. Balancei a cabeça que sim. Meu irmão e o primo esfregavam as mãos, nervosos. O coveiro me empurrou para dentro do cubículo de cheiro insuportável e trancou a porta. Resisti firme e olhei até esgotar o meu horror. Bati na porta, ele abriu-a e eu saí. Passei o dia cuspindo, sem querer comer.
No sertão dos Inhamuns, onde nasci e vivi até os cinco anos, os crimes violentos eram bem comuns. Criei-me ouvindo os relatos de brigas sanguinárias entre famílias inimigas. Algumas histórias me impressionaram tanto, que uma encarnação não será suficiente para recontá-las até extinguir o efeito nefasto que tiveram sobre mim. Elas são o lastro da minha literatura épica e trágica.
Hoje, depois de 50 anos trabalhando em hospitais públicos, onde o que se vê é doloroso no limite do suportável, tenho evitado o contato próximo com a realidade de nosso país, até como método de sobrevivência. Poupo-me das imagens muitos fortes e avassaladoras. Mesmo assim não consigo evitar o sofrimento e a comoção. As cheias do Recife e as consequentes mortes me aniquilaram. E, agora, o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.
O martírio desses dois heróis, que morreram lutando pelos povos originários da Amazônia, me faz entender o que sentem aqueles que são apedrejados, queimados, crucificados por uma ideia, uma causa, uma crença. Percebo através deles que existe um bem maior do que a vida e uma força que vence a morte.
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