Entremez

Não pedirei cidadania portuguesa

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

02 de Junho de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Somos mais ficcionistas na medida em que sabemos mentir e convencer os outros de nossas mentiras. A história que vou narrar aconteceu de verdade. Será mesmo? Não sou um grego antigo, por mais que também valorize a memória. Ninguém ousaria dizer que a narrativa de O banquete, feita por Apolodoro a um companheiro, se desvia uma frase do que falaram no famoso jantar em casa de Agatão. Apolodoro não esteve presente ao encontro, ouvira o relato de Aristodemo, que compareceu à festa na companhia de Sócrates, de quem era discípulo e admirador. 

Apesar de reproduzir os discursos sobre o Amor de filósofos e poetas, muitos anos depois de tê-los ouvido, garante-se que nada foi adulterado da conversa. Os gregos não perdoavam a traição à memória e à verdade.           

Comecei a crônica com um prólogo erudito, coisa inteiramente sem valor nos dias atuais. Se vocês desejam constatar o desprestígio da verdade e do bem, assistam ao debate entre Ciro Gomes e Gregório Duvivier, no Canal do Cirão, e se envergonhem com o amontoado de mentiras, agressões, vaidades, insultos, bajulações e falsidades. Lamentem que o tempo das pessoas seja gasto em presenciar discursos de inverdades e falsificações com o único fim de alcançar curtidores e eleitores. No encontro, tão diferente das palestras gregas, é impossível diferenciar o comediante do político, de tal maneira os dois se confundem. 

Vamos à minha singela história, acontecida na década de 1980. Sempre que levava os filhos à escola, sentia-me observado por uma senhora de feições sérias, quase duras, que conduzia duas meninas pelas mãos. Porém algo no rosto da mulher me parecia familiar. Um dia, fui abordado de forma bem direta, sem preâmbulo. 

– Você é Ronaldo Correia de Brito?, a mulher me perguntou.
– Sou, respondi intimidado.
– O que o seu Brito tem a ver com Pedro Alves de Brito, da Palmeirinha dos Brito, no Crato?
– Ele era meu tio bisavô, irmão da minha bisavó Raimunda Anacleta de Brito. 

A mulher torce o rosto e me olha, como se tratasse com uma falsificação. 

– Apenas por parte de pai. Mundinha era filha do primeiro casamento de Antônio de Brito Correia com Maria Anacleta Duarte de Menezes. Mesmo assim, somos primos. Sou bisneta de Isabel de Brito Bitu, irmã de sua bisavó pelo segundo casamento de Antônio com Leonarda Bezerra de Menezes. 

A mulher para um instante, toma fôlego e imagino o computador do seu cérebro estabelecendo sinapses familiares, até chegar aos rebentos que nos acompanham. Olha as filhas dela, os meus filhos e ordena: 

– Meninas, cumprimentem os primos de vocês no oitavo grau. 

E sai tão intempestivamente como me abordou. 

Era comum, nos campos de batalha gregos, os heróis recitarem a genealogia ascendente e esperarem o mesmo do outro combatente. Se um deles achava que o rival não estava à sua altura, dava as costas e não lutava. 

Tudo isso é para fazer rir. 

Pedro Alves de Brito mandou escrever nas paredes de casa os nomes de sua árvore genealógica. Menino, eu olhava aquilo e achava complicado. Habituei-me a repeti-los e memorizá-los, a ponto de não achar difícil chegar ao meu décimo avô. Ninguém era famoso como os ancestrais dos heróis gregos. Tratava-se, quase sempre, de portugueses do norte, chegados ao Brasil, miscigenados com indígenas e afrodescendentes, vivendo da agricultura e pecuária. Mesmo sem barões ou príncipes na família, quanto orgulho dos meus tios velhos em repetir os nomes, talvez para exercitar a memória, já que naquele tempo não existia palavras cruzadas nem desenhos para colorir. 

Outro assunto recorrente nas reminiscências dos familiares era a nossa ascendência judaico-sefardita, tratada sem pabulagem nem compromisso. Pesquisas neurológicas realizadas no Ceará e na Paraíba revelaram doenças de natureza genética, atribuídas à uma possível herança judaica. Ninguém mais põe em dúvida a presença de judeus convertidos, os marranos, no nordeste do Brasil, e sua extensa descendência. 

O assunto tornou-se alvoroço. 

A Comunidade Israelita de Lisboa abriu processo indenizatório e de reconhecimento aos descendentes de judeus sefarditas, que sofreram perda de bens ou danos físicos e à vida no período da Inquisição Portuguesa. 

Os nazistas, durante a aniquilação do povo judeu, investigavam as origens dos suspeitos até a terceira geração. A Inquisição era bem mais perversa, levando o processo de incriminação de um judeu, mesmo que ele não professasse a religião nem praticasse costumes, até a oitava geração. Agora, interessados em ganhar nacionalidade originária portuguesa e passaporte da comunidade europeia, muitos se esforçam, gastam tempo e dinheiro em processos que se arrastam por anos, tentando provar seus vínculos com sefarditas dos séculos XVI e XVII, vítimas das perseguições. 

Me perguntam se estou correndo atrás da indenização reparatória. Respondo que nunca pensei nisso, embora o meu quarto avô, Raimundo Duarte Bezerra, já seja reconhecido como de ascendência judaico-portuguesa, o que me orgulha muito. No momento, estou engajado na luta para que afrodescentes e povos indígenas sejam reparados por anos de brutal colonização, aniquilamento e genocídio.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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