Entremez

Não custa nada lembrar a história

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

04 de Junho de 2020

Não foi nos EUA: protesto pela morte de Pedro Gonzaga, em 2019, no supermercado Extra, no Brasil

Não foi nos EUA: protesto pela morte de Pedro Gonzaga, em 2019, no supermercado Extra, no Brasil

Foto FotoRua/NurPhoto/NurPhoto via AFP

Sim, é certo, nas eleições de 2018 o Nordeste derrotou o atual presidente Jair Bolsonaro. No Ceará, ele teve maioria numa única urna. Foi recusa fragorosa ao candidato, aos seus filhos e seguidores.

Era esperado.

Também era esperado que bradassem vozes contra o povo nordestino, acusando-o de atraso e ignorância. A escolha contrária do que agora nos leva ao caos é coragem. No Nordeste, ocorreram as grandes revoluções libertárias. E também os massacres de pessoas que buscavam sobrevivência e mudanças: em Canudos, no Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, nos Currais do Governo ou campos de concentração do Ceará, durante a seca de 1932.

Mas nossa história deixou de ser narrada ou foi falsificada.

Canudos rendeu livro famoso, Os Sertões, escrito por um carioca que não conheceu nem entrevistou o Beato Antonio Conselheiro, que veio à Bahia para uma cobertura jornalística encomendada por jornal de São Paulo. A antropologia e a sociologia de Euclides da Cunha estão impregnadas de cientificismo, consonante com a época em que o livro foi escrito. Teorias de inspiração europeia e norte-americana, racistas, supremacistas, cientificistas, que defendem a eugenia e são contrárias ao hibridismo, atribuindo ao cruzamento das raças formadoras do Brasil todos os nossos males.

Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil, e fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexo de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir nossa terra. Escreveu.

A teoria sobre o que é o nordestino prevalece até hoje e custa mudá-la. A afirmativa euclidiana de que o sertanejo é antes de tudo um forte serviu para dourar as balas de canhão com que destruíram o arraial de Canudos e sua gente, mascarar o preconceito e o desprezo.

Os massacres contra nordestinos foram sempre comandados do Rio de Janeiro, quando era capital do império ou da república.

Por causa da Revolução de 1817, Dom João VI retirou de Pernambuco toda a Comarca de Alagoas. Na Confederação do Equador, em 1824, D. Pedro I subtraiu de Pernambuco a Comarca de São Francisco, dando-a à Bahia, que havia colaborado com a repressão aos dois movimentos republicanos.

Se todas as províncias abandonarem os pernambucanos, será inteira a nossa glória, esplêndido o nosso sepulcro, pois ousaremos resistir! ... Discursou um dos governadores gerais da República de 1817, no dia em que foi abençoada a bandeira revolucionária.

Agora, quando a nossa democracia chega ao limite, depois de ser ameaçada diariamente, as instituições finalmente se unem, deixam de lado as idiossincrasias partidárias que nos trouxeram ao caos. É urgente agir. Estamos com as datas de ação vencidas.

Relembrar 1817 é pensar a história e o futuro. Que revolução foi essa que pouco estudamos nos livros? Em parceria com Everardo Norões, escrevi um espetáculo sobre a consagração da Bandeira de 1817. Recortei alguns trechos sobre o acontecimento, avivando nossa memória.

                                                           ***

Em 1807, Portugal é ameaçado pelas tropas francesas de Napoleão e D. João VI se transfere para o Brasil com toda a sua corte. Em 1808, a abertura dos portos transforma o Rio de Janeiro num grande centro financeiro e comercial. O país passa a fazer parte do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves.

Mas nada muda, principalmente no Nordeste agrário. Os portugueses continuam a controlar o comércio e a ocupar os melhores empregos.

Em 1817, a crise: caem os preços do açúcar e do algodão. Os comerciantes perdem lucros, entre o povo aumenta a fome. Aviva-se o ódio contra o domínio português.

Há os que pretendem o poder e outros, apenas sobreviver. As ideias iluministas, liberais, inspiradas pela Revolução Francesa, brilham como farol aceso. Circulam pela maçonaria, por igrejas e seminários. Padres e seminaristas, comerciantes e artesãos, os mais brilhantes intelectuais do Nordeste se envolvem no movimento revolucionário.

No dia 6 de março de 1817, ele explode: o brigadeiro Barbosa de Castro, encarregado da repressão, foi executado pelo capitão José de Barros Lima, o Leão Coroado. O movimento triunfa. O governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro se entrega. Forma-se o governo provisório republicano em território brasileiro, tendo à frente Manuel Correia de Araújo, Domingos José Martins, Padre João Ribeiro, José Luís de Mendonça e Domingos Teotônio Jorge.

Da fortaleza do Brum, ao forte das Cinco Pontas; da praça do Comércio ao quartel da Soledade, em armas todo o Recife. A revolução se espalha pelo Nordeste: da comarca das Alagoas ao sertão do Ceará; da Paraíba ao Rio Grande do Norte.

Quem são os cabeças?

No Ceará, José Martiniano de Alencar e sua mãe, Bárbara de Alencar. Na Paraíba, Amaro Gomes Coutinho. No Rio Grande do Norte, André de Albuquerque Maranhão.

A Lei Orgânica do estado revolucionário institui a liberdade de consciência, a liberdade de imprensa, a liberdade religiosa. São abolidos os tributos sobre os gêneros de primeira necessidade. Temendo a falência dos engenhos de açúcar, os escravos não são libertos, embora houvesse um regimento de homens pretos, que lutava ao lado dos regimentos de pardos e brancos. As parcialidades se revelam.

No dia 19 de maio de 1817, a Revolução já está derrotada. Centenas de revolucionários morrem nos combates, são presos, banidos, executados, incluindo os líderes e governadores provisórios.

DOMINGOS JOSÉ MARTINS, comerciante capixaba, um dos cinco governadores provisórios da República, noivo da revolução.

– Fuzilado na Bahia, no dia 12 de junho.

JOÃO RIBEIRO MONTENEGRO, padre. Um dos cinco governadores provisórios da República. Professor, cientista, desenhista da nossa bandeira.

– Suicidou-se no dia 19 de maio, em Paulista. Seu cadáver foi arrancado do túmulo pelos portugueses. Sua cabeça foi cortada, enfiada na ponta de uma vara e exposta por dois anos em frente à igreja do Corpo Santo, no Bairro do Recife.

DOMINGOS TEOTÔNIO PESSOA, militar. Um dos cinco governadores provisórios da República, mais tarde eleito governador único.

– Enforcado no Recife, no dia 10 de julho. Cortaram sua cabeça e suas mãos e expuseram em praça pública. O resto do cadáver foi arrastado por cavalos até o cemitério.

As sentenças e execuções se sucediam.

Joaquim Rabelo do Amor Divino, o Caneca, passa anos preso, mas consegue sobreviver e se torna o líder da Confederação do Equador, que explode em 1824. Dona Bárbara de Alencar, revolucionária cearense, torna-se a primeira presa política.

A caminho do Forte das Cinco Pontas, no Recife, onde seria enforcado, mas termina sendo espingardeado pela falta de quem aceitasse pôr a corda no seu pescoço, o Frei Caneca enxerga, pelos versos do Auto do Frade, de João Cabral de Melo Neto, nossa luz nordestina transformadora.

... é estreita a nesga do tempo
para que se chame vida.
...
Eu sei que no fim de tudo
um poço cego me fita.
Difícil é pensar nele
neste passeio de um dia,
neste passeio sem volta,
(meu bilhete é só de ida).
Mas, por estreita que seja,
dela posso ver o dia,
dia Recife e Nordeste,
gramática e geometria,
da beira-mar e Sertão
onde minha vida um dia.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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