Entremez

Matem e comemorem! É a lei do país

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

05 de Julho de 2021

Cena do filme 'Capitão Phillips' (2013)

Cena do filme 'Capitão Phillips' (2013)

Imagem Reprodução

Mesmo não gostando do cinema americano de ação, nem do ator Tom Hanks, assisti Capitão Phillips (2013). Lembrei Ariano Suassuna, sua recusa ao escritor inglês Rudyard Kipling, que tinha um olhar colonizador sobre os povos dominados e usava estereótipos orientalistas ao criar personagens indianos.

Tom Hanks interpreta Richard Phillips, um comandante naval da marinha mercante americana, que junto com a tripulação irá entregar mercadorias, alimentos e água na Somália, onde agem bandos de piratas a serviço de mercenários. Logo no início, Richard Phillips é apresentado como bem casado, preocupado com a família e o mundo, prodigalizando amor à esposa e aos filhos, firme e resoluto ao tratar com os subordinados do cargueiro. Trata-se de um subtexto banal, sem aparente sentido, mas que ajuda a construir o perfil heroico do capitão.

Num contraponto a essa ordem e disciplina, mostra-se uma aldeia miserável na costa somaliana, onde chegam os mercenários contratadores da ação pirata no navio de Phillips. Os somalis são agitados, gritam, se agridem, mascam ervas e o que irá assumir o comando, Muse, assassina um companheiro logo no início da missão, feita por meio de duas lanchas, cada uma tripulada por quatro homens. Um barco retaguarda dá suporte à distância. Os somalis estão fortemente armados, ao contrário do navio mercante, onde não se usa armas.

Quando o Capitão Phillips percebe que serão vítimas da ação pirata, comunica-se com a guarda americana, pede socorro, mas seus temores são subestimados. Ele ordena aumentar a velocidade do navio, manobrar em giros e ligar mangueiras d’água na tentativa de conter o avanço das lanchas. Uma delas desiste da ação, mas a que é comandada por Muse com três piratas a bordo, retorna no dia seguinte. Num clima de faroeste, com índios atacando carroças de pioneiros, começam as escaramuças. A tripulação se esconde na casa de motores, enquanto os somalis sobem ao convés por meio de escadas e dominam o comandante e seus imediatos. Na manobra, a lancha dos somalis é destruída.

Começa o filme pra valer. Os Somalis querem dinheiro, muito. Muse revela que foi pago o resgate de 6 milhões de dólares por um navio grego sequestrado e Phillips, com seu jeito protestante e piedoso, quer saber quanto desse dinheiro retornou para eles. Olha os africanos dos pés à cabeça e sugere que não receberam nada, a julgar pela miséria dos quatro rapazes, o mais novo com apenas dezesseis anos. Até o desfecho, Phillips mantém o discurso e a postura de missionário em evangelização na África, aconselhando-os a mudarem de vida, a não se deixarem enganar, alertando que apenas os mercenários – que não correm nenhum risco – lucram com a pirataria. Tenta convencê-los a se conformarem com 30 mil dólares guardados no cofre do navio, mas eles não cedem, garantem não estar brincando e ameaçam matar. Muse acusa os americanos de invadirem o litoral somaliano e de pescarem os peixes deles. Phillips rebate, fala que as águas são internacionais e que trazem ajuda humanitária para a população faminta.

Reagindo ao envolvimento da trama bem conduzida, leio o subtexto do filme, enxergo a propaganda imperialista desse povo mostrado como generoso, que cuida dos pobres e combate o crime sem nenhum interesse, apenas em nome da democracia. O que cansamos de assistir no Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria... Percebendo que não convencerá os somalis a aceitarem o pouco dinheiro, Phillips e seus imediatos começam a buscar meios de enganar os africanos, enquanto esperam a ação da guarda.

A ação culmina com a fuga dos quatro sequestradores numa baleeira, levando o capitão refém.

O Império contra-ataca com três navios de guerra, helicópteros, soldados de elite saltando de paraquedas e aparato técnico. A diplomacia cria engodos para ganhar tempo e realizar uma missão de resgate perfeita, embora em vários momentos a vida do capitão corra risco. O negociador da polícia americana atrai o comandante somali Muse, para um falso encontro com o conselho de anciãos de seu povo, e o prende num dos conveses. Prometem aos africanos que serão poupados, receberão 10 milhões de dólares e tudo terminará bem, com o retorno deles à costa. Apenas um dos piratas, desde o início, desconfia da falsa diplomacia, mostra-se violento e não se convence da bondade fingida de Phillips e demais negociadores.

Quatro míseros somalis mantêm sob ameaça o Império, com seu aparato de força e tecnologia. Lembra a recente história de Lázaro Barbosa, sozinho no meio da mata, enfrentando a inteligência e a mobilidade da polícia brasileira.

No final, três somalis são mortos por rajadas de metralhadoras e apenas um é preso, descumprindo-se que poupariam suas vidas. A intenção da polícia americana era mesmo matar e isso não é camuflado.

No final da minissérie jornalística da Globo, transmitida durante 20 dias, Lázaro Barbosa foi morto com uma dezena de tiros e teve o corpo arrastado como se fosse um saco de lixo, a nudez exposta. Não havia empenho em prendê-lo e levá-lo a julgamento como seria de direito.

No Brasil, a lei policial é matar, sobretudo pobres, negros e pardos. O trucidamento de Lázaro Barbosa foi comemorado com festa em todos os segmentos da sociedade, até pelo Presidente da República.

Chegamos à banalização da morte.

Faz sentido escrever literatura no Brasil? Todos os dias milhares de romances, dramas, tragédias, novelas e filmes se inscrevem e representam num contínuo de enlouquecer. "A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida", escreveu Oscar Wilde. Se a arte brasileira imitar a vida será apenas um pleonasmo.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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