Entremez

Lua da Paixão

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

05 de Abril de 2021

FRAME Reprodução filme 'Hook', de Steven Spielberg

Os sinos das igrejas de Casa Forte e Casa Amarela não tocaram no Domingo de Ramos. Habituei-me a ser acordado com o toque alegre, que a pandemia do coronavírus silenciou, da mesma maneira que silencia as pulsações da vida. Na falta, lembrei versos do poeta Ângelo Monteiro:

Há muito calaram sinos
Pois não quem os tanger.
Nem meninas, nem meninos
Tangem sinos em seu ser:

Calaram os sinos do mundo
E eu sinto a alma doer.

Um ditado popular garante que o costume é o que mata. A falta das celebrações, festas e rituais mata mais depressa. Assim tenho sentido o mundo e assim tenho vivido, morto pela metade.

Não tivemos festejos de Natal e Ano Novo, nem de Carnaval. Não tivemos os teatros da Paixão, numerosos em Pernambuco. Não teremos o São João. Os dias se apresentam iguais, repetidos no calendário, como a dieta sem sal de um hipertenso ou sem açúcar de um diabético. Calendários exibem feriados, iguais a qualquer outro dia. Astros celestes cumprem suas rotas, mas parece não existir mais equinócio ou solstício.

O homem antigo se pautava pelos rituais. Na quaresma, quarenta dias que se seguem à Quarta-Feira de Cinzas e preparam para a Páscoa Católica, guardava-se jejum e abstinência de carne às sextas feiras, proibiam a caça e que se prendessem pássaros em gaiolas. Inimigos davam trégua aos seus rancores, pois em Cristo até os opostos se reconciliam. Na Paixão, católicos mais ortodoxos como minha avó materna, não permitiam banho, canto, assobio, que se varresse a casa ou penteasse o cabelo. Éramos obrigados a um descanso semelhante ao Shabat judeu, possível origem desse ritual. Mas passada a meia noite da sexta-feira, todos os excessos eram cometidos em nome da Ressurreição.

Em cidadezinhas como Barbalha e Várzea Alegre, acompanhei penitentes mendicantes encobertos por opas escuras, vagando pelas casas, cantando e pedindo esmolas. Alguns ainda retalhavam as costas com açoites de lâminas, até o sangue descer aos tornozelos. Mantinham a identidade secreta, diziam que pai e filho de uma mesma família ignoravam o costume secreto do outro. Agora, se mantém como folclore ou atração turística, desprovida de valor religioso ou simbólico, os rostos desvelados para qualquer celular, máquina fotográfica ou, de preferência, câmera de televisão. 

Mesmo desprovidos de misticismo, os cantos mal-assombrados ainda causam arrepios e medo.

Na quinta-feira, Jesus com seus discípulos
Foi de Oliveira para Jerusalém
Fazendo a Páscoa, Jesus com seus discípulos
E padeceu a favor do nosso bem. 

Sim, me lembro bem, foi na cidade de Várzea Alegre, Ceará, onde eu acompanhei um grupo de penitentes de porta em porta, numa noite de lua cheia, quinta para sexta-feira. Opas pretas com bordados brancos de cruzes, cabeças quase enfiadas nos peitos, vozes potentes e cheias de vibratos, nada punha medo a um bando de rapazes risonhos, em festa, bebendo garrafas de vinho ruim.

Choveu. Os homens piedosos não pararam de cantar, nem procuraram abrigo. Eu me recolhi a um terraço, de onde tudo via e ouvia. 

Os rapazes despiram as roupas. Nuzinhos, corriam, pulavam, se banhando nas biqueiras dos telhados e chafurdando em poças d’água. Dois grupos distintos disputavam minha atenção, sagrados e profanos.

Desliguei o gravador, protegi a máquina fotográfica numa sacola de lona. Um dos rapazes fugiu do companheiro que o perseguia e abrigou-se no meu esconderijo. Seu corpo branco molhado tremia de frio. A nudez trêfega resplandeceu à luz da lua, escoada nas nuvens. O rapaz lambia os pingos de água escorrendo, talvez sentisse a mesma sede do Cristo na cruz. Em nenhum momento cobriu o sexo com as mãos. Olhava os amigos, indiferente à minha presença. Os cantos de morte cessaram. Só a vida pulsava.

Para que os cantos da terra,
Se não há quem mais os cante?
Descobriu-se o último brilho
Da estrela mais distante:

Mas resta um mar inventado
À espera de navegante.

(Ângelo Monteiro)

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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