Entremez

Livre falar é só falar

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

09 de Agosto de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Considero o exercício de escrever cartas, redações e discursos por encomenda o meu início. Sobretudo as cartas, pois eu precisava ouvir longos relatos de vida e depois passá-los ao papel. Substituí minha mãe, uma professora primária, nesse ofício. Ela era bondosa, ajudava as pessoas humildes e analfabetas escrevendo aos seus parentes distantes, maridos, noivos, filhos, pais ou irmãos. Gastava-se tempo nesse ofício. Mamãe tornou-se cada dia mais ocupada e pediu que eu assumisse o lugar dela. As pessoas, quase sempre mulheres, sentavam em um lado da mesa, eu me sentava no outro, ouvia e anotava. Assim, aos dez anos, aprendi que se deve ouvir as pessoas com atenção, olhá-las e, em seguida, procurar dar forma à escuta.

Desse aprendizado, evoluí no gosto pela medicina, que consiste em ouvir, olhar e tocar a pessoa enferma, antiga lição de Hipócrates esquecida em tempos de alta tecnologia. Os pacientes tornaram-se meus narradores. Em enfermarias ou consultórios, não passava um dia sem anotar dramas, tragédias ou comédias, em prontuários e agendas de bolso.                                                          

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Perguntaram a Isaac Bashevis Singer: “Por que você escreve sobre ladrões judeus e prostitutas judias?”. E ele respondeu: “Querem que eu escreva sobre ladrões espanhóis e prostitutas espanholas? Eu escrevo sobre os ladrões e as prostitutas que conheço”. Nasci e vivi no sertão dos Inhamuns. Morei anos no Crato, cidade do Cariri cearense, cercada de sertão por todos os lados. Depois vim residir no Recife, para onde convergiram e ainda convergem sertanejos do Nordeste. Qual a paisagem física e amorosa que me habita por dentro e por fora? O sertão. Em qualquer lugar por onde eu viaje, o sertão me acompanha. Mesmo escrevendo sobre Berkeley ou Toulouse, a memória do sertão é inevitável porque ele está em toda parte, como disse Guimarães Rosa.

Andei falando que tenho um projeto literário. Dizer o mesmo, hoje, soaria falso. No romance Estive lá fora, o personagem Cirilo se movimenta em meio à violência e ao medo que reinavam durante a ditadura militar. Ele pensa sobre o irmão Geraldo, um ativista político, e em como ele poderá ser morto. O texto é um delírio sobre a escrita: "...imagina esse final como um presente que está além e é remoto, que o espreita no ônibus, nas ruas, nas pontes, despercebido, mas inesquecível. Ele cruza uma linha incerta que sabe existir no futuro, em meio ao nevoeiro ou aos destroços da cheia. Semelhante a se estivesse sonhando, tudo parece absurdo, impossível de acontecer". Dessa maneira surgem narrativas, sem forma definida, espreitando em algum lugar.

Prefiro escrever sobre mulheres, embora isso tenda a ser desautorizado aos homens, nos tempos atuais. A escolha preferencial por personagens femininos é afetiva. Tive mulheres fortes, corajosas e sensíveis ao meu lado, mulheres que amei e me deram o prumo na vida. Olho bastante os homens, mas eles me escapam, ou nem sempre sou capturado por eles. As mulheres eu as sinto com intimidade, elas me chegam mais perto, mas isto não se dá de um modo exclusivo. Tenho diversos personagens masculinos, eles até predominam numericamente em meus contos, romances, crônicas e teatro.  

                                                           * 

O escritor Rubens Figueiredo e eu participávamos de uma mesa sobre literatura brasileira, quando me fizeram a tradicional pergunta, essa que se tornou curricular para mim: você se considera um escritor regionalista? Rubens pediu o microfone e afirmou ser um regionalista, jamais um universalista. Ele traduz e estuda literatura russa, sabe que, apesar da divisão entre eslavófilos e europeizados, os escritores se preocupavam em criar para leitores da Rússia, pensando neles. Refletiam sobre o povo russo e chegavam às grandes questões do homem, sem veleidades universalistas.

No Brasil, desde o começo do século passado, havia um desejo de escrever semelhante a europeus e norte-americanos modernos. Gilberto Freyre e vários intelectuais criaram um movimento em oposição à Semana de Arte Moderna de 1922, o Movimento Regionalista-modernista, de 1926. Da valorização da cultura regional, surgiu o romance de 30, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Erico Verissimo, para citar apenas alguns nomes.

Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano Ramos achava que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do país com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenando por “ignorância ou safadeza” muita coisa que merecia ser salva. Com desconcertante franqueza respondeu quando lhe perguntaram se era modernista: “Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”. Se o regionalismo idealizado por Gilberto Freyre em reação aos modernistas ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que já existia desde as capitanias hereditárias, agravou a tendência em separar a produção intelectual do Nordeste e Sudeste.

Existiram cânones do regionalismo e do romance de 30. Passados noventa anos, não se escreve mais com essa linguagem, a menos que seja um caso de anacronismo. Mas estabelecem que ter nascido e morar numa região, e vivenciar a cultura local, é regionalismo.

A questão é séria. O empenho de intelectuais e acadêmicos de diversas áreas – sociólogos, antropólogos, críticos literários – em folclorizar e subestimar o valor da produção cultural das regiões brasileiras, fora do eixo Sudeste, que detém o poder econômico e da informação, é bastante desleal e antigo. Cabe na análise das causas uma leitura política, por serem indissociáveis. Do Rio de Janeiro vieram os comandos que reprimiram a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, movimentos republicanos emancipatórios do Nordeste. Também do Sudeste chegaram as forças militares que esmagaram Canudos e veio a orientação para bombardear o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidades que sonhavam com um novo modelo de sociedade. Tratava-se de populações caboclas, descendentes de índios e escravos retomando o modelo dos quilombos e tribos. Somos mestiços de negros, índios, portugueses, judeus, sírios, libaneses, árabes, ciganos, holandeses e de muitos outros povos, falamos o mesmo idioma brasileiro, mas temos padrões culturais diferentes. Gilberto Freyre defendia nossa miscigenação, contrariando o que a ciência equivocada do século XIX e início do século XX condenava como degenerescência racial, o que levou muitas nações, inclusive o Brasil, ao delírio da eugenia.

Cometeram erros históricos ao nos interpretarem. Sendo do Rio de Janeiro, não havendo nascido no sertão de que trata em sua obra, Euclides da Cunha contribuiu para codificar o que lhe pareceu sertão, guiando a academia, leitores e gerações futuras a buscarem o modelo estabelecido por ele de semiárido habitado por bárbaros, sub-raça ameaçada de desaparecer. Esse livro preconceituoso, supremacista, racista, cientificamente ultrapassado tornou-se a cartilha em que universidades e gerações de leitores formaram um imaginário de sertão e do homem sertanejo. O processo é semelhante ao dos orientalistas em relação ao Oriente. Da mesma maneira que o Oriente é corrigido e penalizado por estar fora dos limites da Europa e América do Norte, o sertão do Nordeste brasileiro sofreu por se encontrar fora dos limites da sociedade do Sudeste. Foi igualmente “sertanizado” por acadêmicos e cientistas.

Edward Said refere os dois aspectos do Oriente que o distinguem do Ocidente, na geografia imaginativa europeia: a Europa é poderosa e articulada; a Ásia é derrotada e distante. Mudou. A China ainda não havia se tornado o que é hoje, é bom lembrar. Vale o mesmo para o Nordeste e o Sudeste? Perdemos o poder econômico e cultural, deixamos de estabelecer regras, desde a chegada de D. João VI e sua corte ao Rio de Janeiro. Já no século XVIII, tentava-se controlar as migrações de sertanejos do “norte” para os sertões “paulistas”. Paulista não se referia apenas aos nascidos no Estado de São Paulo, mas a uma legião de bandeirantes, criadores de gado, grileiros de terra e mineradores, que ocupavam São Paulo, Goiás, Paraná e até territórios do Piauí. Portanto, esse “sudeste” já definia leis, espaços, conceitos, padrões e até o que nós, da banda de cá, podíamos ser e sonhar.            

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necessariamente a opinião da revista Continente.

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