Entremez

Em meio à neblina, a derrota

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

02 de Agosto de 2018

Ilustração Janio Santos

Perguntei aos dois rapazes por que não viam o jogo. Estranho me oferecerem uma cadeira de frente para a tevê, enquanto permanecem de costas, bebendo cachaça com suco de laranja.

– Tem outra televisão ali na frente.
– Ah!, exclamo surpreso, e só nessa hora percebo duas telas gigantes em lados opostos, sintonizadas no mesmo canal, e a confusa arrumação da plateia.

Sou tímido e aéreo nos ambientes que não costumo frequentar.

– Onde vai assistir Brasil e Bélgica?, perguntei ao vidraceiro que tirava medidas para um boxe, em nossa casa.
– Talvez com a mulher e os filhos. Bom mesmo é num boteco, na companhia dos amigos.
– No restaurante de Inácio...?
– Melhor no bar de Abel, aquele à beira da pista.
– Conheço. Já comi carne de sol e buchada ali, quando Abel era vivo.
– Agora tá melhor, depois que a viúva e o filho assumiram.

E bastante conversa fiada, até se concluírem as medidas.

Acertado o preço, o homem marca a data de entrega e vai embora.

Não temos rádio, televisão, internet, nem o celular funciona em nosso sítio de Taquaritinga do Norte, no agreste pernambucano. Um desterro, exílio de Babel. Preferimos assim. À noite, evitamos acender as luzes. Os ouvidos se afinam nas cantigas de grilos, sapos, corujas e coelhos do mato. Baixa uma neblina espessa, a casa mergulha num útero silencioso. Quem já esqueceu o que é o silêncio, reclama. Alguns hóspedes entram em pânico, abrem as janelas, desejam retornar à cidade com urgência. A escuridão remonta ao conceito de breu, escuro de meter os dedos nos olhos.

Rumino indeciso para que tevê olhar. A disposição de mesas e cadeiras parece arbitrária, as pessoas escolheram os mesmos lugares onde sentaram nas partidas anteriores. Há essa superstição, deu sorte das outras vezes, o Brasil ganhou quatro jogos, sofrido e feio, mas ganhou. E se acham que dou azar? Estou ali pela primeira vez, sou um estranho, embora conheça parte da assistência discreta, mulheres e homens de verde e amarelo, bebendo cerveja, cachaça, vodca, comendo linguiça de bode e churrasco.

– Vai beber o quê?
– Nada, estou dirigindo.
– Aqui em Taquaritinga não tem isso não.

E a minha consciência, e a ética? Não faço a pergunta, só remoo.

O garçom me aguarda sorrindo.

– Sendo assim, uma cerveja.

Peço a marca mais cara. Podia ter pedido a mais barata, já que vou apenas tapear.

– E pra comer?
– Mais tarde.

Os garçons são educados, simpáticos, atendem bem. A população do município descende de portugueses. De maioria branca, manteve-se fechada em casamentos consanguíneos. Falam igualzinho aos trasmontanos, aos borbotões como se brigassem.

– Gol!

Contra.

As pessoas se olham apáticas. Nenhum palavrão. Os únicos achincalhes são contra Neymar. A imprensa inglesa não gosta dele, chama o nosso jogador de resmungão, dramático, trapaceiro e mimado. Engraçado ele viajar com uma corte de bajuladores e o cabeleireiro. Pelé, Rivelino, Zagalo e Ronaldo cuidavam mais em jogar bem do que da juba. São os tempos midiáticos. É necessário vender a imagem, as tatuagens, as sobrancelhas e o corpo depilados, o corpo despido para as grifes de cuecas, o corpo objeto de desejo. E os companheiros à tiracolo, a turma? Talvez supram a falta de uma infância e uma adolescência gastas na disciplina dos treinamentos para se tornar um grande jogador e valer muito dinheiro. Investimento. Capital humano comparável ao de um carro de fórmula 1. Mais caro, bem mais caro. Henrique III de França também nunca se separava da corte de amigos e fieis servidores. Alguns até se mataram quando ele foi assassinado. Alguém faria o mesmo por Neymar? Uhn! Outro enturmado era o ator Leonardo de Caprio. Largou o berçário. As pessoas crescem.

– Gol!

O segundo.

A mesma apatia da distinta plateia se embriagando com cerveja, cachaça e vodca.

O comandante do nosso Exército, general Eduardo Villas Boas, declarou que “os brasileiros perderam a confiança uns nos outros e estão muito carentes de disciplina social”. Uhn! Outro golpe em mira? Ele garante que não. E ilustra sua afirmativa dizendo que “podemos medir isso em grandes eventos como a Copa do Mundo. Está totalmente diferente a reação da população”.

É verdade, nem parece 1970, quando ganhamos o tri e enlouquecemos. O governo militar manipulou o sonho a seu favor, aumentando a força e a repressão em nome do nacionalismo de futebol. Agora as pessoas abriram os olhos? Não. Ninguém saiu às ruas para protestar contra os abusos da câmara e do senado, votando projetos na surdina, resguardados pelos gritos de gol, projetos que favorecem o agronegócio, o uso abusivo de tóxicos, a ampliação dos desmatamentos, a venda da Eletrobrás Norte e Nordeste, de territórios da Amazônia... E se trata apenas de um governo respaldado pelos militares, cujo discurso ressalta que “somos um povo conhecido pela tolerância, pela solidariedade”. Tolerância! Que terrível qualidade para um povo. O comandante precisa lamentar a nossa tolerância passiva, beirando a apatia, ao invés de exaltá-la.

Termina o jogo. Os dois rapazes sentados ao meu lado, bonitos e silenciosos, estão na quarta lata de cachaça. Quase ninguém comenta o que assistiu, as conversas retornam aos assuntos da luta diária. As vendas da sulanca caíram muito e esse é um dos principais meios de sobrevivência das populações de Santa Cruz, Toritama e de várias cidades do agreste. Os repetidos assaltos às agências bancárias, com explosões de caixas eletrônicos, tornou a vida das pessoas mais difícil. Em Surubim, quadrilhas explodiram e saquearam quatro bancos numa única noite.

– Perdemos! Fazer o quê?, alguém fala às minhas costas.

Pago a cerveja, ganho a calçada, observo a plateia de longe. Os eucaliptos cheiram, a tarde esfriou bastante. Imagino como seria a região ao chegarem as primeiras mudas do café arábica típica. Chovia naquele tempo. Agora, a serra sobrevive a duras penas como um dos últimos brejos de altitude, sem nenhum decreto ou lei a protegê-la. Na televisão, um jornalista reclama porque Neymar se recusa a dar entrevista.

O que ele pode dizer sobre a nossa derrota?

Perdemos e pronto.

Em tudo?

Sempre?

Quanta frustração e tristeza.

Volto para casa, de onde não deveria ter saído.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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