Entremez

Em Lisboa, escutei falarem em português de Portugal

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

04 de Julho de 2018

Frame do filme 'Terramotourism', do coletivo Left Hand Rotation, sobre uma Lisboa em transformação

Frame do filme 'Terramotourism', do coletivo Left Hand Rotation, sobre uma Lisboa em transformação

Foto Reprodução

O motorista que conduz o tuk tuk por um roteiro da Lisboa histórica para em frente ao Panteão Nacional, que antes de ser o mausoléu de personalidades famosas era a Igreja de Santa Engrácia, nos estilos barroco, neobarroco e maneirista. Leio as informações num livrinho e o jovem condutor português, formado em história, repete-as decoradas como os garotos de Olinda fazem para os turistas. Em frente ao cemitério de luxo, três tuk tuk estacionados são dirigidos por brasileiros. Abordo um deles. O rapaz bonito, com curso superior em Administração, é de Minas. Simpático, oferece do almoço que trouxe numa marmita e come apressado. Convida a viajar em novos passeios, me informa que divide casa com mineiros na periferia da cidade, gosta da vidinha e não pensa em voltar ao Brasil. Está impossível, muita violência e falta de emprego, me diz mastigando. Um molho escorre da marmita para o piso do carrinho, ele se desculpa e limpa com uma flanela.

Descemos no transporte desconfortável do alto Chiado, onde nos hospedamos em um apartamento moderno, com fachada de prédio antigo, na Garrett, um endereço concorrido de Lisboa. Quase não se escuta o português, minoria entre o francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, línguas nórdicas e dos Balcãs. Os chineses, japoneses e coreanos são também maioria com as suas máquinas fotográficas. Há gente demais, constato. Um taxista reclama porque chegaram 45.000 franceses aposentados, todos com privilégios e incentivos fiscais por fixarem residência no país, queixa-se de que eles não pagam impostos na França nem em Portugal, eu não compreendo a aula de economia e me calo. Faz um dia de sol com frio, a cidade é linda, uma das mais belas da Europa, o lugar onde os ingleses preferem morar e os espanhóis, fazer compras. No Brasil, pedidos de cidadania portuguesa aceleram. Só no consulado de São Paulo houve 50.000 concessões desde 2016.

Na Alfama, os turistas arrastam malas pelas calçadas, igualzinho a Paris. Enfeitaram as ruas e becos para a festa de Santo Antônio. Velhos inquilinos de sobrados e pardieiros são obrigados a deixar suas moradas por conta da especulação imobiliária. O turismo é um negócio lucrativo, falam que cresceu 330 por cento só neste ano, é necessário acomodar os visitantes, reformar prédios. Lisboa transformou-se num canteiro de obras, esbarra-se numa construção a cada 100 metros. Os lisbonenses reclamam, sentem-se prejudicados, os negócios imobiliários pertencem na maioria aos estrangeiros.

Na Alfama, encontramos uma tasca ao velho estilo. Agora não é tão fácil achar restaurantes com a comida tradicional. Ela sofreu adaptações ao paladar internacional, quase todos os restaurantes oferecem hambúrgueres e batata frita no cardápio, aumentou o consumo de cerveja, existe produção local competindo com o vinho. Pedimos queijo da Serra da Estrela, pão e café. Humilha constatar como se bebe bom café em Portugal, enquanto no Brasil, o maior produtor de grãos do mundo, ele é quase sempre ruim, sobretudo no Nordeste. O balconista oferece um tinto da casa. É cedo para nós, queremos ver a Feira da Ladra, comprar alguns presentes.

Em meio às quinquilharias descobrimos louças de Sacavém, azulejos de demolição por apenas 1 euro, desenhos, gravuras, livros, fotos, cristais, muitas joias e tecidos. Os preços atraem, é preciso ter olho e paciência para discernir o que possui valor e não se deixar enganar pelo falso. Os vendedores, alguns africanos, orientais e ciganos gostam de negociar, faz parte do jogo insistir nas propostas e contrapropostas, até comprarmos ou desistirmos. Há o risco de andarmos alguns metros com o vendedor em nosso encalço, baixando os preços até quase oferecer de graça.

Gostaria de levar tudo, digo. Mas ainda vou ao Porto, a Freixo de Espada à Cinta, lá na fronteira com a Espanha, não dá para carregar essas coisas, se tivesse um caminho ligeiro entre Portugal e o Brasil. Pela quantidade de brasileiros que todos os dias decidem se mudar para o antigo Reino, uma estrada foi aberta e asfaltada. Mesmo assim não adquiro nada, não costumo fazer compras nas viagens, nasci sem vocação para mascate ou colecionador.

Sinto fome, a chance de não comer bem em Portugal é mínima, entramos num restaurante açoriano e erramos. O gerente se dirige a nós e oferece o primeiro menu, o dos idiomas: inglês, francês, espanhol, italiano, alemão...? Acho-o agressivo e pedante. Perco a oportunidade de me levantar e sair da casa, o cara gruda na gente quando descobre que somos brasileiros, começa a falar de política, a vangloriar-se de ter sido informante da polícia federal do Brasil, denigre o ex-presidente Lula, estou a ponto de bater nele, engulo o bacalhau à moda do Açores com raiva, o vinho desce azedo, o valor da refeição é alto, a comida apenas honesta, não aceitam cartão de crédito e tenho de pagar em dinheiro vivo. Ah, o turismo!

Retornamos ao apartamento para um descanso. À tarde, seguimos até a Fundação Calouste Gubenkian, pelo metrô da Estação Chiado. São cinco escadas rolantes íngremes até se alcançar as plataformas dos trens. Em meio à multidão, um cego se orienta com uma bengala. Esse espetáculo de extrema solidão comove minha esposa. Ficamos pelos jardins do Gubenkian, falta humor para as exposições. As árvores, os pássaros, a água corrente nos parecem mais acolhedores. Esfria. Dá tempo conhecer o Terreiro do Paço, ou a Praça do Comércio. Sento-me de frente para o Tejo virado em mar, experimento uma dolorosa nostalgia do passado navegante, de um povo que sou e sempre fui.

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

À noite, quando descemos para um passeio em volta do elevador de Santa Justa, sou abordado três vezes por homens jovens, bem-vestidos, dois brancos e um negro. Oferecem-me haxixe. Um deles abre um pequeno recipiente de metal e expõe a mercadoria para me convencer de que é boa. Sorrio, agradeço, me afasto sem receio e falo à minha esposa que está na hora de dormir. De madrugada, turistas embriagados – ou drogados? – vandalizam depósitos de lixo. Pela manhã, quando funcionários chegam para iniciar um novo expediente de vendas, olham indiferentes o estrago, afastam garrafas vazias com os pés, abrem as portas das lojas e talvez pensem nos trabalhos e nas horas do dia começando.

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EXTRA:
Assista ao documentário Terramotourism AQUI

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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