Entremez

Disparates em tom profético         

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

03 de Agosto de 2021

Il Capitano, um dos personagens da Commedia dell'arte

Il Capitano, um dos personagens da Commedia dell'arte

Imagem Reprodução

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Ando igual a um rabi que entrasse de madrugada numa sinagoga, e batesse à porta de carvalho para advertir os espíritos que oravam antes dele. Tudo se afasta, me estranha na noite escura e molhada. A cidade tornou-se alheia a mim, que julgava conhecer cada uma de suas pedras. Não acerto os caminhos de ida e volta. O longo cativeiro me exilou do mundo. Abro a arca onde guardo pergaminhos e livros, mas já não sei interpretar a escrita de rio, becos, ruas, praças e monumentos. Durmo e sou acordado por pesadelos, sonho com lugares pantanosos.   

“O rabi imaginou a família humana perecendo, casas ruindo, tudo que era mau desfazendo-se... Tempo, acidentes, paixões e lutas desapareciam, pois não passavam de ilusão e logro.”  

Porém o mau não se desfez, fortaleceu-se. Os poderes se engalfinharam numa luta por mais dinheiro e poder; a família humana afundou em miséria, fome, doença e sofrimento. Mentiras foram plantadas como verdade, em nome da fé. Com cinismo e desfaçatez, adulteram os escritos, plantaram confusão e discórdia. 

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“Que você ore ou não, a verdade é que Deus não se preocupa com você. Se ele pudesse pensar em você por um só instante, examinar tua aflição!... Quem dera, Deus abandonou suas criaturas... porque se é assim que ele vela por elas, então até mesmo você, com toda tua fraqueza, poderia reinar sobre mil mundos!”  

Mas são os pastores e bispos do capital que reinam sobre você e o mundo, extorquem os últimos centavos do teu bolso, enchem tua cabeça de mentiras e teu coração de medos. Falam coisas más em nome de quem acenava com a bondade. Transformam religião em ópio, cumprindo as profecias marxistas. O inferno manipulado por eles volta a ameaçar, crescem as labaredas que pareciam apagadas pela ciência. Pregam a Palavra deles próprios. Ameaçam com O Inimigo. Pedem que se desfaça do que possui, doe o último suor do trabalho, os ganhos poucos, tornando-se mais miserável. Que aumente o capital de pastores e fariseus. Levam-no a desconfiar do bem, onde talvez fosse possível encontrar a verdade.
 
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 “– Vai, Abraão, vai, ajoelha-te diante da face do Senhor, rasga as tuas vestes e dize: ‘Senhor, Senhor, eu e minha mulher, Sara, rogamos-te que não aniquiles Sodoma e Gomorra por causa de seus pecados’. E dize ainda o seguinte: ‘Compadece-te de Teu povo culpado, tem paciência. E tem piedade, deixa-os viver. De nós, Senhor, do Teu povo, não deves pedir que apontemos dez justos entre todo o Teu rebanho”.  

Nunca nos exijas o que é impossível. Dez justos na Câmara, Senhor, onde reina absoluto o Centrão, com legisladores policiais, militares e falsos apóstolos da Tua fé? Dez justos no Executivo, onde se penduram como roupas em cabide seis mil militares da ativa, ou aposentados? Dez justos na Justiça, onde a balança, de muito pesar errado, de ter dois pesos e duas medidas para pobre ou endinheirado, acabou enferrujada? Não nos peça tanto. Dizem em tom de brincadeira que sois um brasileiro, por acidente, o que O torna conhecedor de nossas fraquezas, do vício da corrupção em que chafurdamos. Rogo, Senhor, que me considereis justo como o teu servo Lot, que mandeis os teus anjos me avisar quando fizerdes chover enxofre e fogo. Preciso fugir a tempo, com toda minha família, para Portugal. 

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“Aquele que serve e lucro procura
E segue apenas por formalidade,
Se começa a chover, arruma a trouxa
E te abandonará na tempestade.”

 O disparate saiu da boca de um personagem de teatro, o Bobo do Rei Lear. O rei enlouqueceu e o bobo o conduz e orienta. Os papéis se inverteram na Bretanha dividida entre as duas filhas do monarca. Em nossa Republiqueta, o rei não tem a dignidade de um rei, nem a sabedoria de um bobo. Ele parece mais um palhaço decadente, rufião esquecido de seu papel. Fala disparates e distrai a plateia do leão faminto que nos espreita e tudo devora em nome do Capital. Nosso rei oscila entre a confusão da mente e a falta de caráter. Confunde os espectadores, ansiosos pelos papéis definidos. Engana-os com mentiras. Para sustentar-se no trono, transfere o poder sobre o reino da Bananolândia a dois barões representantes das Províncias do Baixo Clero. Lear entregou a administração da Bretanha às duas princesas filhas e ocupou-se com viagens. Nosso Rei tolo gasta seu tempo fazendo motociatas, seguido por uma corte de debiloides, que aplaude suas asneiras. Porém sabe, apesar das limitações intelectuais, e porque seus três filhos não param de soprar-lhe ao ouvido, que se começa a chover, os aliados de ocasião arrumam a trouxa e o abandonam na tempestade. Mesmo assim, atua obediente ao script traçado por outros.  

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Continente.

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