“O rabi imaginou a família humana perecendo, casas ruindo, tudo que era mau desfazendo-se... Tempo, acidentes, paixões e lutas desapareciam, pois não passavam de ilusão e logro.”
Porém o mau não se desfez, fortaleceu-se. Os poderes se engalfinharam numa luta por mais dinheiro e poder; a família humana afundou em miséria, fome, doença e sofrimento. Mentiras foram plantadas como verdade, em nome da fé. Com cinismo e desfaçatez, adulteram os escritos, plantaram confusão e discórdia.
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“Que você ore ou não, a verdade é que Deus não se preocupa com você. Se ele pudesse pensar em você por um só instante, examinar tua aflição!... Quem dera, Deus abandonou suas criaturas... porque se é assim que ele vela por elas, então até mesmo você, com toda tua fraqueza, poderia reinar sobre mil mundos!”
Mas são os pastores e bispos do capital que reinam sobre você e o mundo, extorquem os últimos centavos do teu bolso, enchem tua cabeça de mentiras e teu coração de medos. Falam coisas más em nome de quem acenava com a bondade. Transformam religião em ópio, cumprindo as profecias marxistas. O inferno manipulado por eles volta a ameaçar, crescem as labaredas que pareciam apagadas pela ciência. Pregam a Palavra deles próprios. Ameaçam com O Inimigo. Pedem que se desfaça do que possui, doe o último suor do trabalho, os ganhos poucos, tornando-se mais miserável. Que aumente o capital de pastores e fariseus. Levam-no a desconfiar do bem, onde talvez fosse possível encontrar a verdade.
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“– Vai, Abraão, vai, ajoelha-te diante da face do Senhor, rasga as tuas vestes e dize: ‘Senhor, Senhor, eu e minha mulher, Sara, rogamos-te que não aniquiles Sodoma e Gomorra por causa de seus pecados’. E dize ainda o seguinte: ‘Compadece-te de Teu povo culpado, tem paciência. E tem piedade, deixa-os viver. De nós, Senhor, do Teu povo, não deves pedir que apontemos dez justos entre todo o Teu rebanho”.
Nunca nos exijas o que é impossível. Dez justos na Câmara, Senhor, onde reina absoluto o Centrão, com legisladores policiais, militares e falsos apóstolos da Tua fé? Dez justos no Executivo, onde se penduram como roupas em cabide seis mil militares da ativa, ou aposentados? Dez justos na Justiça, onde a balança, de muito pesar errado, de ter dois pesos e duas medidas para pobre ou endinheirado, acabou enferrujada? Não nos peça tanto. Dizem em tom de brincadeira que sois um brasileiro, por acidente, o que O torna conhecedor de nossas fraquezas, do vício da corrupção em que chafurdamos. Rogo, Senhor, que me considereis justo como o teu servo Lot, que mandeis os teus anjos me avisar quando fizerdes chover enxofre e fogo. Preciso fugir a tempo, com toda minha família, para Portugal.
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“Aquele que serve e lucro procura
E segue apenas por formalidade,
Se começa a chover, arruma a trouxa
E te abandonará na tempestade.”
O disparate saiu da boca de um personagem de teatro, o Bobo do Rei Lear. O rei enlouqueceu e o bobo o conduz e orienta. Os papéis se inverteram na Bretanha dividida entre as duas filhas do monarca. Em nossa Republiqueta, o rei não tem a dignidade de um rei, nem a sabedoria de um bobo. Ele parece mais um palhaço decadente, rufião esquecido de seu papel. Fala disparates e distrai a plateia do leão faminto que nos espreita e tudo devora em nome do Capital. Nosso rei oscila entre a confusão da mente e a falta de caráter. Confunde os espectadores, ansiosos pelos papéis definidos. Engana-os com mentiras. Para sustentar-se no trono, transfere o poder sobre o reino da Bananolândia a dois barões representantes das Províncias do Baixo Clero. Lear entregou a administração da Bretanha às duas princesas filhas e ocupou-se com viagens. Nosso Rei tolo gasta seu tempo fazendo motociatas, seguido por uma corte de debiloides, que aplaude suas asneiras. Porém sabe, apesar das limitações intelectuais, e porque seus três filhos não param de soprar-lhe ao ouvido, que se começa a chover, os aliados de ocasião arrumam a trouxa e o abandonam na tempestade. Mesmo assim, atua obediente ao script traçado por outros.
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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.