Entremez

Crônicas de um passado recente que parece hoje

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

02 de Setembro de 2019

Imagem da obra 'Mapa de Lopo Homem II', de Adriana Varejão

Imagem da obra 'Mapa de Lopo Homem II', de Adriana Varejão

Foto Jaime Acioli/Divulgação

A OUTRA REVOLUÇÃO
Escutei Mangabeira Unger, na velha cidade de Olinda, falando sobre cultura e questões do desenvolvimento brasileiro. O ministro extraordinário de assuntos estratégicos viajava ao lado de Gilberto Gil numa caravana pelos estados, apresentando propostas para a transformação do país. Entre os compromissos do projeto, estavam a afirmação de nossa originalidade e a radicalização do experimentalismo. O discurso de Mangabeira Unger, carregado nos tons revolucionários, emocionou a plateia pernambucana, gente acostumada às revoluções libertárias.

Próximo ao local do encontro com os dois ministros fica o Seminário de Olinda, onde há mais de 200 anos foram discutidos os ideais da Revolução de 1817, um evento pouco conhecido, até mesmo pelos pernambucanos. A revolução dos padres, como ficou conhecida, teve como propagadores e mártires “sacerdotes lidos em filosofia revolucionária, o que no Brasil daquela época significava uma revolta da inteligência”, escreveu Oliveira Lima.

A conspiração se fazia nas lojas maçônicas, no comércio, nos quartéis, em reuniões patrióticas, a portas fechadas ou abertas. A prisão dos suspeitos, decretada pelo governador de Pernambuco, precipitou os acontecimentos. O capitão José de Barros Lima, o Leão Coroado, reagiu às ordens do seu comandante e matou-o. Era 6 de março de 1817, o primeiro dia de uma república formada pelos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba, que duraria pouco mais de três meses. As ramificações baiana e cearense não vingaram, a Bahia tornou-se o centro de onde partiram as ações repressivas ao movimento separatista.

Os revoltosos foram presos, deportados ou executados por fuzilamento e enforcamento. Seus corpos, arrastados por cavalos nas ruas do Recife, tinham as mãos, os pés e as cabeças cortados e depois expostos em pontes e praças públicas. Um saldo de centenas de mortos e banidos, talvez o maior da nossa história colonial e imperial. Mas os pernambucanos não se intimidaram e, sete anos depois, ressurgiram noutro movimento republicano, a Confederação do Equador, que terminaria com o suplício de Frei Caneca.

Oliveira Lima considera que a Revolução de 1817 “foi um sinal mais dos tempos, a manifestação de uma combinação de impulsos em que entravam o amor exagerado, literário se quiserem, filosófico mesmo, mas em todo caso ativo, da liberdade, e uma noção jactanciosa da valia americana”. E, citando o abade Pradt, “pela primeira vez, tratando-se do Brasil com relação a Portugal, uma parte da América aprendera a levantar a cabeça mais alto que a Europa e dar leis àqueles de quem tinha por hábito recebê-las”. Embora muitas vezes se refira com desdém ao movimento pernambucano, sobretudo aos excessos teóricos e pouco práticos da Revolução, reconhece que ela “tinha condições em si para vingar e expandir-se, tornando-se Pernambuco o centro de atração do Brasil independente, ou mais verossimilmente a primeira seção independente do novo Reino desagregado”.

O ministro Mangabeira Unger traçou projetos para o futuro do Brasil. Seu discurso poético e filosófico sugeria incorporar o social na lógica da transformação econômica, exaltava a divinização do homem, propunha pensarmos no futuro e viver o presente, incitava a nos rebelarmos contra a falta de justiça e de imaginação, estimulava a produção como diversificação permanente e descentralizada.

Pernambuco, por conta de sua tradição revolucionária, seria, junto com o Acre e o Rio Grande do Sul, um estado piloto para execução dos projetos do ministro. Ao anunciar isso, houve um leve frêmito na sala, sem palmas nem gritos tão comuns à nossa exaltação. Talvez porque já passamos pelas esperanças e frustrações de muitas outras revoluções. Esperamos mais essa que o ministro nos propõe. Com ânimo e incerteza.

A ÁFRICA MUDOU-SE PARA A FRANÇA
De Montmartre, fui caminhando ao quartier La Goutte D’Or, no 18 Arrondissement. Nunca estive na África, mas imaginei-me na República dos Camarões. Ou passeando em Salvador. Também lembrei o Harlem de Nova York e Mission, um bairro de São Francisco, na Califórnia. Quem me levou ao quartier foi Camilo Soares, um pernambucano que reside há cinco anos em Paris, onde estuda cinema. Sentia-me cansado de museus e igrejas, da burocracia dos passeios turísticos, previsíveis e tediosos. Desejava conhecer uma outra Paris.

Os franceses colonizaram boa parte da África Negra – Senegal, Mali, Guiné, Niger, Togo, Camarões, Costa do Marfim, Congo, Benin, República Centro Africana – e da África Magreb – Marrocos, Argélia, Tunísia e Mauritânia. Durante anos, enriqueceram às custas de suas colônias. Ao contrário dos portugueses, quase sempre se mantiveram separados e brancos, não dando margem a tratados de sociologia morena como Casa-grande & senzala. Não há bons métodos no colonialismo, mesmo que teóricos insistam em afirmar ganhos para os colonizados.

Nenhum dos países referidos alcançou o mesmo grau de prosperidade da França, nem culturalmente, nem em qualquer outra riqueza mensurável. A prova disso é o crescente movimento migratório de negros e árabes, todos fugindo da miséria, da fome e da violência nos seus países de origem. Eles se julgam no direito de viver em solo francês, assim como os franceses se julgaram no direito de usar os métodos violentos da colonização e explorá-los.

Um pouco da África instalou-se em Paris. Escutamos idiomas e dialetos em meio ao francês dos negros. Nos mercadinhos vendem inhame, cará, macaxeira, dendê, farinha, feijão preto, pimentas, vísceras para buchada, amendoim, gergelim, o que se compraria na Guiné ou num mercado do Recife. Durante o dia, quase não se veem brancos em La Goutte D’Or. Os negros predominam, sobem e descem ruas vestidos nas roupas de sua terra, falando alto e gesticulando, bem diferentes dos franceses do Marais. Numa loja, encontrei imagens de santos do catolicismo, velas de xangô, rosários dos árabes, quinquilharias chinesas e objetos de sex shoppings.

Num café, onde éramos os únicos brancos, escutei bossa nova e a voz de Agostinho dos Santos. Senti-me em casa. Não propriamente tão igual, porque embora estejam num país que não é o deles, os negros da França possuem uma desenvoltura que não é comum entre as populações negras e pobres do Brasil. E também porque o café servido era excelente, como não se costuma tomar no Brasil, o maior produtor de grãos do planeta.

Desejei ficar uns dias em La Goutte D’Or. Conheci naquele bairro de imigrantes uma França nova, à margem do caminho traçado pelos guias turísticos. Talvez no futuro o quartier siga o mesmo rumo dos bairros propagados em folhetos de portarias de hotel. O meu guia Camilo Soares aconselhou-me a não passar por ali à noite. Os traficantes de droga tomam as ruas e há sempre o risco de assaltos e violência. Muitos consumidores marcam presença, comprando cocaína, haxixe, maconha e pedras de crack. Quem sabe, é esta a nova espiral turística.

Quando colonizaram a Indochina, atual Vietnã, os franceses estimulavam o consumo de ópio pelos nativos, para torná-los submissos e apáticos. Era um método do colonialismo. Agora, negros e árabes vendem drogas aos franceses. Sei que não se trata de um método. Mas sinto que algo está acontecendo no Velho Mundo.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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