Entremez

Criação e confissão

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

04 de Abril de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Segundo Freud, no processo de escrita os conteúdos inconscientes passam por um crivo do consciente, antes de se transformarem no que chamamos ficção. Mesmo numa escrita automática, ou de fluxo de pensamento, o processo é o mesmo. Conteúdos fragmentários e meramente inconscientes são produção de uma mente descontrolada e em estado de loucura. Assim como nos sonhos, em que admitimos que “conhecíamos e nos recordávamos de algo que estava além do alcance de nossa memória de vigília”, na criação também podemos reconhecer conteúdos da vida pessoal e do que incorporamos de outras fontes à nossa própria história. 

Quando trata sobre “A psicologia dos processos oníricos”, Freud registra um sonho narrado por uma paciente, que por sua vez o escutara numa conferência. O sonho impressionou de tal maneira a mulher que ela também passou a sonhá-lo, ou seja, “a repetir alguns de seus elementos num sonho próprio, de maneira que, apoderando-se dele, podia expressar sua concordância com o mesmo, num ponto determinado”. 

A história foi a seguinte: Um pai estivera de vigília à cabeceira do filho doente, por dias e noites. Após a criança falecer, passou para o quarto ao lado a fim de repousar, mas deixou a porta aberta de maneira que pudesse ver a sala onde o corpo jazia, com longas velas erguidas em torno dele. Um velho fora contratado para velá-lo e sentou-se junto ao corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai teve um sonho. O filho estava de pé ao seu lado, pegou-o pelo braço e sussurrou em tom de censura: pai, não vê que estou queimando? O homem acordou e percebeu um clarão brilhante na sala, correu para lá e descobriu que o vigia tinha caído no sono e que as roupas e um dos braços do cadáver do filho haviam sido queimados por uma vela acesa, que tombara sobre eles.

Não é minha intenção analisar essa narrativa, o que já fez Freud no livro A interpretação dos sonhos, mas deter-me num tema pertinente às nossas interrogações de hoje: como esse relato é incorporado pelo conferencista; pela senhora que o escuta e passa a ressonhá-lo e a narrá-lo; e por Freud, que dedica um capítulo a ele no livro fundador da psicanálise. Mesmo se tratando de um sonho, de conteúdo onírico, a abordagem teria uma intenção científica, de documento ou registro, mas a repetição o encaminha para o campo ficcional, o transforma em peça de literatura.

O que é mais relevante é a narrativa tornar-se propriedade coletiva, memória de outros, a ponto de ser sonhada por estranhos. O registro de uma história se torna ficção, incorpora-se ao inconsciente e é reelaborado como sonho. Em sucessivas etapas, um relato biográfico ou, se preferirmos, simplesmente um relato de história, é incorporado com diversas funções e significados. O registro biográfico vira ficção e a ficção retorna como novo registro. 

Cabe a pergunta: ao fazermos um registro biográfico, registramos a biografia de quem? A nossa? Mas o que é nosso? O que podemos garantir ser próprio se é possível acessar um legado de bens que se acumulam em milhares e milhares de anos de história do homem?

Em Shakespeare, história e ficção se misturam num espaço nebuloso. Quem são o Júlio César, o Antonio e o Brutus shakespearianos? O que possuem em comum com a história?  Quem foi o rei Lear? Será possível não ter existido? 

Escutei um relato semelhante à tragédia do Rei Lear, na Serra das Varas, cidade de Arcoverde, no interior de Pernambuco, numa noite à luz de candeeiros, enquanto jantávamos. A narradora era uma pessoa simples, que pegou a deixa de uma reclamação do marido sobre a comida sem sal e emendou essa história, narrando como se tivesse acontecido ali perto e ela fosse testemunha ocular da mesma. 

Um fazendeiro viúvo possuía três filhas. Um dia comunicou que dividiria as terras e todos os bens com elas, que viajaria pelo mundo e quando retornasse viveria um tempo com cada uma das filhas. Pediu à mais velha que dissesse o quanto o amava e ela disse que o amava tanto quanto ao sol. Satisfeito, repetiu a mesma pergunta à segunda e ela falou que o amava tanto quanto à lua. Convencido do amor das filhas, pediu que a mais nova, sua favorita, também dissesse quanto o amava e ela falou que o amava como ao sal da comida. O homem indignou-se e...

Certa vez, depois de dar uma conferência, recebi um telefonema de meu pai e falei a ele que tinha ilustrado minha fala com a história de nosso primo Gustavo de Caldas, que viajou a Mato Grosso à procura de trabalho, foi grilado, vivendo muito tempo como escravo de uma fazenda. Narrei os detalhes e disse ter escrito um conto, porque o acontecimento tinha impressionado minha infância. 

Papai, que tinha memória fabulosa, revelou que aquela não era a história de nosso primo Gustavo de Caldas. Tratava-se de um relato acontecido com um empregado da fazenda do meu avô paterno, no ano de 1930, quando meu pai tinha apenas cinco anos. Eu a ouvira muitas vezes, narrada por ele, e confundi com a história do primo Gustavo de Caldas. Da mesma maneira que o meu pai, eu também vivenciei a história na infância, por volta dos cinco anos de idade.

Fiquei transtornado com o deslizamento e o conto que escrevi ganhou novo significado. Descobri o modo como se constrói a memória e o patrimônio a que recorremos para produzir nossa de ficção.

Não existe apenas uma memória pessoal. Podemos acessar a memória da família, da comunidade, do lugar onde vivemos, do homem em qualquer tempo. A cultura é um bem comum a todos os indivíduos. O escritor argentino Jorge Luis Borges é o maior exemplo de que se pode lançar mão desse patrimônio, inventando uma nova memória como recurso criativo. 

No princípio era o verbo. As narrativas míticas e os feitos dos heróis eram patrimônio das tribos, que possuíam as suas bibliotecas humanas, pessoas treinadas para guardar a memória e narrá-la. Conquistando outros povos, ou sendo conquistados, as histórias se difundem, propagam-se, se transformam e viram legado de outros. 

O mito diluviano aparece entre os povos sumérios, os hebreus, irlandeses e indígenas das Américas. Cada um que narra imprime uma forma própria de narrar, com geografia e heróis fundadores. “A memória conserva os traços gerais, esquematizadores, o arcabouço do edifício. A imaginação modifica, ampliando pela assimilação, enxertia ou abandono de pormenores, certos aspectos da narrativa. O princípio e o fim das histórias são as partes mais deformadas na literatura oral”, anotou Câmara Cascudo. 

As histórias mudam ao gosto de quem ouve e reinventa, de quem conta um conto e acrescenta um ponto. Os narradores precisam de tempo e silêncio para tecer histórias. E do esquecimento que produz buracos na memória, exigindo o exercício de imaginação para preencher os vazios.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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