Esqueci o aparelho celular ligado e ele tocou me arrancando do sono.
– Ronaldo, feliz Ano Novo!
– Olá, C..., pra você também.
– Avelina está aí perto?
– Não, está lá fora no terraço. E você?
– Em Toquinho.
Havia barulho de fundo, a ligação era ruim, caiu três vezes. Dizem que a telefonia celular do Brasil é a pior do mundo. E a mais cara.
– Soube do sucesso do Baile do Menino Deus, neste ano. Todos falaram bem.
(Não é comum as pessoas muito ricas irem ao Baile. C... se referia ao grupo de sua relação)
– Dois sobrinhos foram assistir e levaram os filhos. Amaram. Um deles quer cumprimentar você.
Continuo sonolento, mal sustento os olhos abertos.
– Boa noite, Ronaldo, prazer grande. Fui ver o seu Baile e ainda estou impactado. É uma produção irretocável, grandiosa, para qualquer público exigente do mundo.
– Obrigado, generosidade sua.
– Sempre passo o Natal no Recife, mas nunca tinha ido, nem sei o motivo. Esse ano criei coragem e fui. Não quero perder mais nunca. Fiquei com uma pergunta martelando meu juízo: por que as pessoas perdem um espetáculo dessa grandeza?
– Nosso público é numeroso, vai gente demais, mal cabe no Marco Zero e ruas adjacentes.
– Me refiro às pessoas da minha classe social.
– Ah, cara, talvez eu saiba, mas não vou encher o teu saco interpretando os motivos.
Trocamos o habitual Boas Festas e volto a dormir.
À meia noite, acordo com os fogos, esqueci de fechar as cortinas do quarto, vejo algumas luzes pelas vidraças, mas não me animo a levantar da cama. Sinto-me exausto, como se a alma ainda vagasse por paragens alheias ao mundo que habito. É sempre assim, depois dos processos de criação, o espírito custa a reencarnar no corpo.
A conversa agora é com uma colega do Pilates, senhora viúva, rica, que torra o dinheiro de duas aposentadorias viajando. Não há território que ela não conheça, talvez apenas a Faixa de Gaza, o Afeganistão, a Síria e a Ucrânia, durante a guerra. Sempre sugiro que faça essas viagens, mas ela alega que são perigosas.
– Já viu o Natal Luz, de Gramado, lá na Serra Gaúcha?
– Fui cinco vezes, achei lindo. O desfile de Papai Noel num trenó puxado por renas, debaixo de neve de isopor, arranca aplausos. Os homens e as mulheres são lindos, todos brancos, louros, os olhos azuis. Descendentes de alemães, poloneses, ucranianos, italianos... só europeus. E a segurança? Pense como é seguro.
– E o Baile do Menino Deus, aquele espetáculo que enceno lá na Praça do Marco Zero, já foi ver?
– Fui não, meu filho, dizem que é muito bonito, mas não tenho coragem de sair de Casa Forte para o Recife Antigo. É muito longe e acho inseguro.
– Mas a senhora atravessa o Brasil de avião, vai do Recife a São Paulo, de São Paulo a Porto Alegre, e segue de carro de Porto Alegre a Gramado. Não é longe?
– Longe, mas compensa. É outra cultura.
– Sei, a senhora não gosta da cultura do Nordeste.
– Para falar a verdade não gosto, não. Acho muito misturada.
– É verdade, tem negro misturado com branco, cabelos pixains com cabelos lisos...
– Não sou preconceituosa, Deus me livre, mas prefiro cada coisa em seu lugar. Quando eu era menina e morava no engenho, os cavalos marinhos se apresentavam. A gente sentada na calçada e eles no terreiro. Em Gramado, dá gosto ver aquele povo de cultura superior à nossa.
– Sei, tem muita gente que pensa como a senhora dentro da administração pública do Estado e da prefeitura.
Prefiro encerrar a conversa. Fazer o que com essa senhora que assiste à missa todas as tardes na Igreja de Casa Forte, distribui esmolas e traz roupas usadas do filho para os rapazes que guardam o carro dela?
Tem gestores nas secretarias de Cultura e Turismo do Estado e prefeitura que pensam igual à bondosa senhora. Pessoas colocadas nos cargos, sem nenhuma competência para eles, por padrinhos políticos que esperam algo em troca pela nomeação. O que será? Eu sei e vocês sabem. A viciada e vergonhosa política brasileira se mantém dessa maneira, do Império à República.
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necessariamente a opinião da revista Continente.