Mesmo sem conhecer a sugestão de Walter Benjamin de que escrever consiste largamente em citações, a mais louca técnica mosaica imaginável, habituei-me a recorrer aos livros que li com devoção. Da mesma maneira que memorizava as histórias da tradição oral, romances cantados e folhetos de cordel, costumava memorizar os livros que lia. O personagem Adonias, do romance Galileia, dialoga com o Senhor Yama, do Mahabharata, no encontro com o tio assassino João Domísio. A solução para Ismael retornar à vida estava na tradição indiana, com a qual sou bastante familiarizado. Nada me impede de recorrer à narrativa védica, alguns milênios depois. O sacrifício de Donana se assemelha ao de Ifigênia em Áulis. Minha família se funda no sangue de uma mulher vitimada, Ana Gonçalves, da mesma maneira que os gregos no de Ifigênia. Eu era criança, mas tentava compreender a saga sertaneja, através do que lia nos livros de outros povos, outras culturas.
Não sei se deveria ter publicado livros, ou apenas escrevê-los e guardá-los. Foi bom ter passado oito anos trabalhando o romance Galileia e mais de vinte corrigindo o conto “Eufrásia Meneses”, do livro Faca. No final da vida, Borges se recrimina pelo tempo gasto na revisão obsessiva de seus escritos: publico para livrar-me de ter de corrigir, falava. Nessa pandemia do coronavírus, em que os teatros foram fechados para evitar a aglomeração de pessoas, lembrei de Grotowsky e o teatro da santidade. Ele reduziu o público dos seus espetáculos a oitenta pessoas. Depois convenceu-se de que o ator deveria representar apenas para si mesmo. Vivi anos com a intenção de fazer algo semelhante na escrita, mas capitulei.
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