Entremez

Certezas e dúvidas

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

02 de Julho de 2020

Quarentena,São Paulo,março de 2020

Quarentena,São Paulo,março de 2020

Foto Suamy Beydoun/AGIF/AGIF via AFP

Diário do isolamento 22
(quinta-feira, 02 de julho)

Hoje completo 109 dias de quarentena. Durante 100 dias fiquei isolado com minha esposa, no décimo primeiro andar do prédio onde moramos, sem receber visitas nem mesmo dos filhos e netos. Quando desço para apanhar compras ou entregar encomendas, uso máscara, às vezes luvas, e não me separo de um vaporizador de álcool. Há uma semana os netos voltaram a frequentar os avós. Constrange-me olhar as crianças mascaradas, perceber o quanto mudou nossa linguagem afetiva e gestual. Elas titubeiam antes de dar um abraço ou pedir o colo.

Exilado, não frequentei lugares públicos. Saí de casa em duas ocasiões, pela madrugada. Estava a ponto de enlouquecer, angustiado e triste. Andar pelas ruas desertas do bairro foi um hausto de vida. Minhas frequências cardíaca e respiratória continuam normais, mas não posso dizer o mesmo de mim. Na família nuclear somos 11 médicos, todos exercendo a profissão. Cinco contraíram a Covid-19. Fiz dois testes com resultados negativos, prova de que o isolamento social, a quarentena que remonta à Idade Média, funciona na pandemia. A ciência ainda busca conhecer o vírus e a medicina trata apenas de sintomas.

Ontem assisti à entrevista que dei a Émilie Audigier, tradutora do livro Faca para a editora francesa Chandeigne, publicado com o título Le jour où Otacílio Mendes vit le soleil. Na época em que gravamos, idos de março e abril, nos aproximávamos dos 4 mil óbitos pela covid-19, bem baixo se comparamos aos quase 60 mil de agora. O governo federal brasileiro se referia à pandemia como “gripezinha” e estimulava a população a não obedecer ao isolamento social nem às outras medidas preventivas, uma atitude obscurantista, visando à salvação da economia.

Na conversa com Émilie Audigier, eu apareço grave, de humor deprimido, o discurso alinhado ao do filósofo italiano Franco Berardi, o de não espalhar o vírus do medo e do isolamento. Previno sobre a quarta onda, os transtornos emocionais e psíquicos que irão nos acometer ao final da pandemia, se é que haverá final dessa história. Inquieta-me o sacrifício da liberdade em troca da promessa de salvar nossas vidas, o viés ideológico e suspeitamente totalitário assumido pelos governantes do mundo.

Dois personagens se debatem em mim: o homem de ciência, médico, informado no pouco que se sabe da Covid-19, e o intelectual cioso de direitos e liberdade. Cercado pelos familiares, todos na frente de combate, numa hora concordo com as orientações da saúde pública, noutra me revolto como um Prometeu. Alarmado com os números da pandemia, cedo às determinações. Fui dos primeiros a recolher-me à solitária “prisão do castelo”, expressão inventada por minha neta Ana, de apenas quatro anos, avessa ao confinamento.

Mas as perguntas não cessam, observo o mundo e me exaspero. Embora admire Lao Tsé e Confúcio, não sou chinês e estou longe da conformada aceitação oriental. Quando era adolescente, colei na porta do guarda-roupa uma fotografia de judeus no campo de Auschwitz com estas anotações: não aceite, nunca permita.

Comecei a escrever um diário. Estou sempre perguntando a quem interessa o sacrifício de minha liberdade. Questionar isso na Alemanha, com Angela Merkel no comando, parece divagação filosófica. Mas no Brasil, logo imaginam afinidades com as loucuras do Senhor Presidente. Vade retro Satana!

Há ênfase nos números da Covid-19 porque ela quebrou a economia mundial e afeta o planeta. Quase ninguém sabe que em 2018, segundo o Ministério da Saúde brasileiro, tivemos 57.341 assassinatos – na maioria de pobres, negros e jovens – e 32.655 mortes por acidente de trânsito. Pouco se comentou. A Covid-19 não faz distinção social, embora no Brasil, um país com elevado número de miseráveis, tenda a prevalecer nos menos favorecidos. A Aids, quando surgiu, tinha esse mesmo comportamento, não distinguia classes. Recebeu mais investimentos do que os males que acometem os pobres, esquistossomose, doença de Chagas, filariose e outras mazelas por falta de saneamento básico.

O excesso de informação sobre a Covid-19 gerou medo e pânico. O futuro tornou-se nebuloso. No Brasil, o isolamento social prestou-se ao aumento de ações criminosas como as queimadas e o desflorestamento na Amazônia, maior ação de grileiros de terra, agressões aos povos indígenas, homicídios e feminicídios. O governo diminuiu recursos da saúde na farmácia popular, quase não fornece medicamentos aos portadores de diabete, hipertensão e cardiopatias. Com as atenções voltadas para a Covid-19, os hospitais e ambulatórios públicos foram desabastecidos e sucateados, as doenças habituais negligenciadas, elevaram-se os óbitos.

Questionar o foco na Covid-19 tornou-se suspeito, sugere descaso com a pandemia, discurso alinhado ao governo federal. Vade retro Satana! Mas se estivéssemos na França, não pareceria assim. É difícil pedir às pessoas que vivem na linha da pobreza que fiquem em casa. Elas necessitam ganhar o mínimo para comer e alimentar os filhos. O governo não supre essa falta. Tem gente passando fome, trabalhadores desempregados, que saem à rua procurando um ganho qualquer, até pedem esmolas nos sinais.

Falam dos que buscam lazer e não obedecem à quarentena. Sim, há muitos desses. Mas existem movimentos para fora que representam vida. Quem busca trabalho, tenta viver. Quem sai à rua para protestar, como os negros norte-americanos depois do assassinato de George Floyd, clama por justiça, igualdade e pelo direito à vida.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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