Entremez

Baixaram as cortinas

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

06 de Fevereiro de 2023

Imagem Arte de Rafael Olinto sobre foto de divulgação de Victória Pérez

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Morreu Ramon Rodriguez Guisande, conhecido por Moncho Rodriguez. Senti o mesmo quando partiram outros amigos, a perda de algo insubstituível. George Laederman carregou a música. Gilvan Samico me deixou sem a gravura. A alegria das aquarelas se foi com Guita Charifker. Desfez-se uma biblioteca de 60 mil volumes ao morrer Giuseppe Baccaro. Moncho me deixa sozinho com o teatro que criamos juntos.

Conheci-o no início da década de 1990, envolto no glamour de quem viveu e trabalhou em Portugal e na Espanha. Nascido em Vigo, na Galícia, neto de um proprietário de barcos pesqueiros, foi marcado por suas histórias do mar. O pai era técnico em instalação de moinhos e o convidaram a trabalhar no Brasil. Moncho criou-se entre Petrolina, Campina Grande e Salvador, se tornando quase filho adotivo da dramaturga Lourdes Ramalho, de quem encenou boa parte da obra.

Nos mais de 30 anos de convivência próxima, não consegui organizar a cronologia nem o traçado geográfico desse andarilho que costumava misturar o real, a criação e a fantasia, parecendo um Trancoso. Prefiro escrever sobre o personagem com quem produzi espetáculos em parceria, tornando-me amigo, interlocutor e aprendiz.

No início da década de 1990, fui assistir, no Teatro do Parque, ao espetáculo As velhas, texto de Lourdes Ramalho e direção de Moncho. Antes, ele tinha dado um curso de formação de atores no Recife, que culminou na montagem de Woyzeck, peça inacabada do dramaturgo alemão Georg Buchner, considerada obra-prima por conter provocações que só apareceriam muito depois, na vanguarda do século XX. A encenação de Woyzeck no Forte das Cinco Pontas foi um acontecimento, revelou muitos talentos da cidade.

Na noite em que assisti às As velhas, emocionado procurei Moncho. Encontrei-o fumando na entrada do Parque. As pessoas referiam um consumo de cinco carteiras diárias e as primeiras intercorrências cardíacas. O jovem diretor de 40 anos ficara nervoso porque os atores não tinham representado ao seu gosto. Elogiei a encenação e pedi que me permitisse assistir à desmontagem do palco. Desejava compreender o efeito ilusório de uma mulher representando a morte, cavalgando por trás de uma sucessão de montanhas. Foi frustrante. Tratava-se de cinco elevações de carpetes, três cortinas transparentes e um artefato de madeira em forma de cavalo, montado sobre rodas e molas. A luz que Moncho conhecia e executava com genialidade transformou os artifícios em ilusórias verdades, em sonhos reais.

Voltei ao jovem diretor de beleza arrogante, acendendo um cigarro depois do outro. Confessei minha estupefação e a vontade de que encenasse um texto escrito por mim. Ele propôs que eu escrevesse. Algum tempo depois, fui convidado a assistir, em Campina Grande, ao O romance do conquistador, de Lourdes Ramalho. Outra estupefação. Porém As velhas continuava sendo uma das grandes experiências teatrais de minha vida.

Quando um escritor e um diretor teatral se conhecem – Moncho ainda não assinava textos, coisa que só veio a fazer bem depois –, surge o interesse de mostrar o que produzem. O trabalho é a melhor forma de aproximação das pessoas. Se deseja conhecer alguém, convide-o a trabalhar junto a você. Levei Moncho para assistir ao Arlequim de Carnaval, escrito em parceria com Assis Lima e com música de Antonio Madureira. A direção de Carlos Carvalho e a produção de Paula de Renor faziam grande sucesso. Nesse tempo – nem está tão longe, mas as coisas mudaram –, os espetáculos ficavam anos em cartaz e atraíam grande público. Arlequim se manteve em pauta por mais de dez anos, viajou pelo Brasil e foi a Portugal com o Projeto Cumplicidades, criado por Moncho.

Assis Lima e eu encaramos o desafio e escrevemos O Reino desejado, um texto teatral carregado de símbolos sebastianistas sobre o Novo Mundo, as Américas. Zoca Madureira vivia uma crise espiritual com as invasões do Oriente pelos Estados Unidos e temia uma guerra final. Líamos o Mahabharata e o nosso pessimismo com o futuro da humanidade só piorava. A primeira versão dessa guerra do fim do mundo foi entregue a Moncho para leitura. Semanas depois, recebi-a de volta, com numerosas sugestões de cortes, o texto inteiro retalhado à faca como no samba breque de Moreira da Silva.

Ao ler o que o galego havia feito com a nossa escrita, desejei nunca mais procurá-lo. Envergonhado e irado, escondi as folhas de papel com a intenção de jamais voltar a elas. Meses depois, amenizada a raiva, retornei aos papéis. Admirei-me com a leitura, a agudeza com que tudo fora analisado, concordei com as sugestões e incorporei-as às futuras escritas. Recebia os primeiros ensinamentos de Moncho sobre o que fosse carpintaria teatral. Nossa amizade começou e se fortaleceu nesse exercício, na leitura em parceria, na cooperação entre escritor e encenador.

A primeira encenação de O Reino desejado foi um desastre, uma verdadeira hecatombe. Programada para abrir o Projeto Cumplicidades no Teatro Guararapes do Recife, começou com duas horas de atraso, as vozes sem amplificação do elenco se perdiam no palco e na plateia, ninguém escutava uma palavra do texto. Anos depois, uma nova encenação com atrizes e atores da Paraíba, de Portugal e Espanha, dirigida com a colaboração de Antonia Bueno e Agustin Iglesias do Teatro Guirigai de Madri, Luis Carlos Vasconcelos do Piolin de João Pessoa e Moncho Rodriguez vindo de Guimarães, compensou a primeira frustração com um resultado arrebatador. O grupo numeroso, interpretando o texto em dois idiomas, fez périplo pelo Brasil, por Portugal e Espanha.

Afinadas as cordas e a parceria, Moncho e eu tocamos uma série de colaborações em espetáculos, conferências, cursos, exposições e viagens. Falar sobre Moncho Rodriguez Guisande me exigiria uma tese de trezentas páginas, coisa a que não me proponho, deixando a incumbência para mestrandos e doutorandos. A escolha pelo Nordeste do Brasil deixou as grandes encenações do diretor genial no escuro, sem serem vistas pelo Brasil inteiro. Com trabalhos de qualidade igual aos de José Celso Martinez Corrêa e Antunes Filho, Moncho pagou o preço pela sua escolha de criar em espaços geográficos do Nordeste do Brasil, Norte de Portugal e Galícia.

Bergman afirmou que preferia o teatro ao cinema porque no teatro sempre era possível corrigir e mudar a cada dia. No cinema, uma vez feito, era definitivo. Felizmente, os filmes de Bergman permaneceram, enquanto o seu teatro se perdeu a cada desmonte de cena. Com Moncho Rodriguez morto, também são incineradas as montagens que ele criou. Por sorte, guardamos o aprendizado e a emoção de ter compartilhado o seu gênio.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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