Entremez

Avenida Xambá! Presente!

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

04 de Março de 2021

Guitinho da Xambá no FIG 2014

Guitinho da Xambá no FIG 2014

Foto Priscilla Buhr/Secult-PE

Guitinho da Xambá encantou-se. Há anos eu percebia sua lenta despedida na recusa em encarar a doença que o dilapidava. Tentei aliciá-lo a um tratamento médico e a resposta foi que não lhe faltava coragem para isso. Mas quando pensava ser o fim, vinha um sonho louco à cabeça e esquecia desses cuidados. Agradeceu aos guias, em especial ao seu carrancudo Pai Ogum e, rindo, se desculpou por ser rebelde, desobediente e obeso.

Dois meses antes de sua morte, Guitinho escreveu uma carta. Li-a com displicência e só depois compreendi tratar-se de um testamento.

“Da janela do hospital Esperança, onde estive internado nesses últimos 23 dias, via a luz do Sol, mas não conseguia vê-lo nascer, nem se pôr. Às vezes, me batia desesperança. Mas isso me fez compreender que nem sempre caminhar com o Sol ao lado significa conquista. O seu brilho intenso pode nos tornar soberbos, displicentes ou cegos. Quando sai de nossa vista, sentimos a importância e o poder de um grande mestre. E revela-se o quanto a escuridão da noite é essencial para sentirmos a primavera de uma estrela.”

– Guitinho! – telefonei preocupado.
– Diga, mestre!

Ganhei o apelido de mestre quando Guitinho foi meu aluno no Centro de Formação Apolo e Hermilo. Acho que eu dava aulas sobre história do teatro, mas ele também frequentou os cursos de criação e gestão de empresas culturais. Ali, concebeu o futuro Centro Cultura Bongar e a luta em defesa da cultura e religião do seu povo.

– Marileide me disse que você se internou num hospital. O que houve com o seu joelho?
– Derrame e inflamação. Já fui operado e vou tomar antibióticos.

Era negligente, nunca sabia informar o que tinha, nem os diagnósticos ou exames realizados.

– Pelo amor de Deus, aproveite e solicite o parecer de um endocrinologista. Você precisa investigar o edema de face, o abdome volumoso, as pernas e os braços afinando.

Eu simplificava o jargão médico, mesmo se tratando de um intelectual e sociólogo.

– Vou pedir, mestre, deixe comigo. Mudando de assunto, o senhor conseguiu tinta com a Coral, pra pintar a sede? E as missangas? Queria muito que as Yabás cantassem no Baile, em 2021. Os meninos do Pirão Bateu, também podem participar?

Choviam pedidos.

– Guitinho, se concentre no tratamento. Será possível! Nem internado você para de trabalhar.

“Percebi que o joelho pode ser um ponto de emenda, ligação entre o céu e o chão, desequilíbrio e firmeza. Assim como o alerta de que se não cuidarmos a gente bambeia e leva um mundo todo conosco.”

Sábia reflexão a de que poderia se enterrar com os sonhos, sonhados para muitos. Entre os vários projetos desse membro da Nação Xambá, praticante do candomblé, descendente de um quilombo urbano, havia o de mudar o nome da Avenida Presidente Kennedy, em Olinda, para Avenida Xambá. O terreiro e a comunidade de Guitinho se localizam próximos a um terminal de ônibus e da antiga estrada de São Benedito, no Bairro de Peixinhos.

No Brasil, existem ruas, avenidas, praças e teatros com o nome do presidente americano, assassinado em 1963. À parte sua morte trágica, simpatia e carisma, nada justifica batizar-se uma avenida, que serve a populações pobres, negras e mestiças com o nome de um branco norte-americano, envolvido na invasão de outros países e em guerras imperialistas, desestabilizadoras de nações, com o pretexto de reprimir o avanço do comunismo.

– A gente vence essa, Guitinho?
– Com certeza! Ganhamos o espaço do Centro Cultural... Só não cumpriram ainda a promessa de reformar o terreiro. É luta, mestre. Todo mundo está gravando vídeo de apoio. Já gravou o seu?

Eleito no ano de 1960, Kennedy foi presidente de 1961 até o seu assassinato em Dallas, em 1963. Durante seu governo aconteceu a Invasão da Baía dos Porcos, a Crise dos Mísseis de Cuba, a construção do Muro de Berlim e os primeiros eventos da Guerra do Vietnã, do qual revelou-se um dos arquitetos. Em 1963, de olho no petróleo, apoiou um golpe contra o governo do Iraque, general Abdul Karim Qasim, que cinco anos antes tinha deposto a monarquia iraquiana, aliada dos empresários e políticos ocidentais.

Os métodos dos americanos são sempre os mesmos e se repetem na América Latina. Aconteceu no golpe militar de 1964, e agora no governo de Jair Bolsonaro. A descarada confissão do jurista Deltan Dallagnol, de que a prisão de Lula foi um presente da CIA, confirma isso.

O trabalho de Guitinho da Xambá consistia no enfrentamento das feridas deixadas pelo colonialismo, escravagismo, racismo e patriarcalismo, e na recusa à violência sofrida por seu povo, que incluiu várias prisões e o fechamento do terreiro.

Guitinho compreendeu que só pela educação mudaria séculos de injustiça. E produziu muito em sua curta vida de 38 anos. Quase não dormia, trabalhava em excesso.

“Nesses dias, vi a importância do que já criei. É algo que me antecede, tem mais que apenas vinte anos. Muitos ainda não compreenderam que não se trata de um trabalho só meu. Pode parecer isso por eu amá-lo tanto, defendê-lo com a força da alma e com minha ancestralidade. Nessa luta, vivi sentimentos de coragem, alegria e também tristeza. Tristeza ao descobrir a fraqueza de alguns. Quando criamos o belo, sem querer provocamos sentimentos tóxicos nos outros. Mas não vai ser agora que a estrada se fecha.  Renovar é sempre o caminho a seguir.”

– Guitinho, você está se despedindo de mim?
– O que é isso, mestre, vamos fazer muitos Bailes juntos. Sexta-feira tem um arroz pra Oxalá, o senhor vem?
– Nem sei. Ainda estou com receio de sair de casa.
– ...
– E essa mensagem que você escreveu, Guitinho? Fiquei mal quando li.
– É poesia. O senhor gostou?
– Muito. Vou mexer nela, dar um acabamento literário. Posso?
– Pode.

Os descendentes de homens e mulheres africanos livres, escravizados por mais de três séculos, se rebelam contra o nome do Presidente Kennedy na via de acesso às suas casas e ao seu lugar de culto. A homenagem é acinte, uma vergonha. Lembra a continência de Jair Bolsonaro à bandeira norte-americana.

– Meu amor por esse país continua inabalado – discursou o presidente brasileiro em Dallas, depois de ser escorraçado de Nova York.

Sinapses grosseiras e perigosas se refazem, nesse tempo de sombras.

– Presidente Kennedy, go home! Viva a Avenida Xambá!

Permaneço na luta, Guitinho.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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