Entremez

Ainda o Nordeste brasileiro

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

08 de Novembro de 2022

Imagem Rafael Olinto

Sim, havia as chuvas de novembro no sertão. Falávamos inverno e seca. No inverno, chovia. Na seca, o verão, o sol queimava forte e o calor constante em todas as épocas se tornava mais intenso.

As chuvas começavam de verdade em dezembro, nos anos bons de inverno, em novembro. Iam até maio, seguravam firmes em janeiro, fevereiro e março.

Se não chovia, era castigo para os mais simples, coisa do clima e da sazonalidade para os ligados na ciência. Ainda não se mencionava o efeito estufa, o aquecimento global, os furos na barreira de ozônio.

Patativa do Assaré cantou em sua Triste partida: Setembro passou com outubro e novembro, já estamos em dezembro, meu Deus o que é de nós. As chuvas definiam o destino dos sertanejos, se continuavam na terra, se iam embora para as cidades.

Na metade do século passado, depois da Segunda Guerra Mundial, começaram as grandes migrações. O campo se esvaziou de sua gente, se inverteu o percentual de escolha entre o mato e a rua. Alcançamos os valores de hoje, oitenta e cinco por cento das pessoas nas cidades.

O antigo sertão do Nordeste brasileiro sobrevive na saudade e nas músicas de Zé Vaqueiro, João Gomes e Flávio Leandro. Os vaqueiros usam boné no lugar do chapéu de couro e cantam o sentimentalismo urbano. Vendem bem no YouTube e em outras plataformas, se plugam no mercado.

Os artistas e as pessoas teimam em sentir saudade desse lugar mítico sertão, plantado no inconsciente, tão longe da realidade cotidiana como o planeta Marte. Esquecem que já no século dezenove o poeta popular Fabião das Queimadas anunciava o fim do arcaísmo sertanejo.

Já morreu, já se acabou
E está fechada a questão.

A casa dos meus avós foi derrubada por tratores, deu lugar a uma rodovia asfaltada. Isso curou-me do tempo estagnado. Na noite escura em que assisti à cena, o barulho forte dos tratores e as luzes dos faróis me deram a impressão de que eu estava noutro planeta. Mas não estava. O sertão continuava ali, diante dos meus olhos, a perder de vista, com o asfalto fedendo mais do que carniça.

Durante o ciclo do couro, nas fazendas mal cabiam os rebanhos de bovinos, ovinos e caprinos. Surgiram repentistas, heróis cangaceiros, santos penitentes e fanáticos religiosos. O modelo econômico de exploradores e explorados serviu de tema ao romance de Graciliano Ramos e a filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.

Veio o algodão e outro ciclo de prosperidade, a indústria e a promessa de que o Nordeste entraria numa nova era, sintonizado com o restante do mundo. A praga do bicudo pôs fim ao sonho de riqueza do ouro branco, cantado por Luiz Gonzaga.

Sem poder retornar ao modelo pecuário exaurido, com a agricultura de subsistência falida, castigados pelas repetidas secas, vulneráveis às informações que chegavam pelo rádio, pela televisão e pelos meios de transporte, os habitantes das fazendas e pequenos sítios foram embora para o Centro oeste, Norte e Sudeste, ocupando a periferia das cidades. O lendário homem sertanejo tornou-se um suburbano fragilizado, um novo personagem para romances e filmes.

O sertão abriu-se. As porteiras dos seus currais também foram escancaradas para a cultura global. As antenas parabólicas e de internet enfeitam os telhados das casas nos grotões mais escondidos. O isolamento de séculos, que permitiu a preservação de culturas arcaicas, aos poucos se desfaz. Não podemos ser diferentes dos outros povos do mundo.

As eleições de 2022 mostraram a força e a vontade do povo do Nordeste. Sofrido, escaldado, espezinhado, insultado, mesmo assim ele decidiu o futuro do Brasil pelo voto. Escolheu o rumo que o país deve seguir.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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