Entremez

A Paixão de Casa Amarela

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

05 de Maio de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Durante a Semana Santa fiquei triste que dava pena. Não costumo sofrer saudade, mas a lembrança do Cariri cearense com os rituais da Igreja, a Via Sacra, a procissão do Senhor Morto, a vigília ao Crucificado, tudo o que eu assistia na infância, me deixou depressivo. Nem sou mais católico, recusei-me a ir à missa e a me confessar desde os dezesseis anos. Tinha saído de casa, morava em Fortaleza, estudava para o vestibular de medicina. Recordo que entrei numa igreja, me ajoelhei no confessionário e depois da fórmula “Padre me perdoe porque pequei”, declarei ao confessor que estava abandonando a religião de minha avó e minha mãe. As duas mulheres praticantes de um catolicismo popular sempre me empurraram para os braços de Deus. 

Levantei-me arrogante pela decisão, sentia-me aliviado da tirania católica. Ganhei a rua, o dia me pareceu mais bonito, sentia-me diferente do que era antes. Não lembro se tomei um sorvete nas horas em que caminhei a ermo, até chegar a noite, quando teria aula no cursinho de um colégio jesuíta. Ainda não estava tão liberto como imaginava. 

Talvez eu continue cristão. A dúvida metafísica sobre a existência de Deus e do Diabo me inquieta e está presente em boa parte do que escrevo. Não sei se vou ter a coragem de afirmar que não creio em nada, que o homem não possui alma, que a morte é o fim de tudo e simplesmente retornamos à matéria. Meu pai fez esta confissão para mim, seis dias antes de morrer. Quando ele tinha trinta e dois anos se indispôs com um padre e foi ameaçado de excomunhão, o motivo para afastar-se da Igreja. 

Minha saudade maior era da quaresma profana, quando no Cariri vivemos os melhores dias de inverno, fartura de milho, feijão verde, quiabo, maxixe, cajarana, seriguela, umbu, canjica, pamonha, arroz doce com mel de rapadura e amendoim torrado e muitos doces e bolos. Nos sítios e arredores das cidades tinha as quintas do Judas, as brincadeiras dos caretas, o cortejo de Pai Véi, antes de ser morto. No sábado ou domingo, explodiam a cabeça de estopim do simulacro do traidor. Festa mais pagã do que católica, contagiada pela dança ao som de bandas cabaçais, cheia de erotismo e exposição de corpos masculinos travestidos, igual aos cortejos dionisíacos da Grécia antiga e às bacanais romanas. 

Fechado em casa trabalhando, com raiva da mixórdia em que transformaram as festas brasileiras, uma barafunda onde Carnaval é comemorado na Semana Santa, eu bolava um plano para acabar todos os feriados religiosos, já que não há mais crença em nada. A caminho de Nova Jerusalém, o trânsito se afunilava para a festa carnavalesca da Carvalheira na Ladeira. E imaginar que minha avó materna proibia que desde a Quarta-feira de Trevas até a meia noite do Sábado de Aleluia se cantasse, risse, tomasse banho ou penteasse os cabelos. Era tão rigorosa com a prescrição de jejum, tristeza e circunspecção nos dias de Páscoa quanto um judeu hassídico com o Dia do Julgamento. 

No sábado à noite, cedi à recomendação da esposa e da filha e fui ver a Paixão de Cristo de Casa Amarela, anunciada como um espetáculo feito pelo povo e para o povo. O céu estava limpo de nuvens, a lua plena, o percurso de casa até o Sítio da Trindade um passeio por ruas semidesertas, caminhada parecida com as que fazia nas Sextas-Feiras da Paixão, à procura de grupos de penitentes se flagelando nas portas das casas e cruzeiros. Homens de cabeças cobertas por capuzes escuros vestiam opas com cruzes no peito e nas costas, e se cortavam com lâminas afiadas até o sangue escorrer ao chão. Penitência? Fé? Arrogância perante Deus. 

Passo em frente à Igreja de Nossa Senhora da Harmonia, as portas estão abertas, no interior brilham poucos sírios, dando aos altares o sobrenatural da sombra. Do lado de fora, padres e acólitos paramentados se preparam para a celebração da Aleluia. Olho da calçada oposta a movimentação solene. Penso em ficar e assistir ao teatro que tanto me encantava na infância. Reluto e desisto, me encaminho ao teatro da Paixão feita por artistas. 

O lugar é bonito, um anfiteatro e três palcos entre árvores. Pessoas simples do povo representam cenas dos Evangelhos, vestidas com despojamento. A modéstia da encenação me comove. Na Palestina talvez fosse assim. Essa gente representando lembra os judeus da Galileia ou de Jerusalém. Saio contente, volto para casa olhando o céu limpo, clareado pela lua cheia. 

No dia seguinte, domingo, decido andar pelo Recife e a miséria das ruas me choca. Duas crianças de oito ou nove anos consumindo crack partem o meu coração. 

O escritor grego Níkos Kazantzákis narra um retorno de Cristo ao Monte Athos, onde havia dezenas de mosteiros e homens piedosos a serviço de Deus. 

Cristo estendia suas mãos feridas aos monges que passavam, e o sangue corria de seus pés nus. Tinha o rosto encovado pela fome e, entre farrapos, aparecia o corpo esquelético. Padecia frio e os olhos estavam cheios de lágrimas. Batia nas portas, ninguém abria, expulsavam-no de mosteiro em mosteiro e os cães corriam atrás de seus farrapos, latindo. 

Lamenta, se queixa: As raposas têm onde dormir e eu não tenho onde encostar a cabeça. 

Senti igualmente a Kazantzákis que Cristo anda esfaimado e sem teto, corre perigo, e que chegou a vez do homem salvá-lo. 

Para Silvana Brito e Amaro Santos 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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