Ensaio

Ser vegana, ou trabalhar com a natureza

De uma fazenda na Itália, nossa colaboradora conta sua experiência de aprender a plantar agroecologicamente e a não comer nem consumir produtos de origem animal

BÁRBARA BURIL, DE LORETO APRUTINO

21 de Junho de 2021

Bárbara Buril na fazenda Frutti D’Oro, na Itália

Bárbara Buril na fazenda Frutti D’Oro, na Itália

Foto Acervo pessoal

[conteúdo extra à reportagem de junho | exclusivo Continente Online]

“O objetivo final da agricultura não é o crescimento de plantas, mas o cultivo e o aperfeiçoamento dos seres humanos”
A revolução de uma palha, de Masanobu Fukuoka 

“Run  from  your father’s house, there is a land that I’ll show you”
Father’s house, de Gaby Hoffmann e Jo Lampert

Eu parei, por um acaso da vida, na casa de uma suíça na Itália. Para ser mais precisa, a casa era uma fazenda, a suíça se chama Bettina e a Itália não é a Itália dos cartões postais, mas a Itália profunda, onde os carros Fiat estacionados na rua já deixaram de ser produzidos há muito tempo e as casas velhas exalam, na rua, um cheiro úmido de mofo. 

Há três meses, estamos em Loreto Aprutino, uma cidade medieval muito pequena, na região de Abruzos, a duas horas de ônibus de Roma. Estamos na fazenda de Bettina Adank, uma agricultora e professora de cozinha vegana de 62 anos, muito forte e cheia de energia. Bettina é vegana há mais de 10 anos e cuida praticamente sozinha de sete hectares de terra. Viemos aqui para passar duas semanas, em um intercâmbio educativo a partir da rede Wwoof (World-Wide Opportunities on Organic Farms, ou Oportunidades Mundiais em Agricultura Biológica ), e já estamos aqui há mais de três meses. A troca seria a seguinte: ela nos ensinaria a como cuidar de sua fazenda de oliveiras e árvores frutíferas e nos ofertaria hospedagem e alimentação. Em troca, nós ofereceríamos a nossa força de trabalho, energia e parte da nossa jornada de lida na sua terra.           

Também por um acaso, a vida nos faz mudar de hábitos. Um trauma, um alerta médico, um pequeno acontecimento, um breve, mas importante, encontro, um esclarecimento, uma informação lida na internet, uma morte. Bettina, que até 1996 era onívora (alimentava-se de carne, laticínios e plantas, como a maior parte das pessoas), adotou uma dieta lacto-vegetariana, livre de carnes, quando conheceu, na Califórnia, a sua mestra espiritual, a supreme master Ching Hai. De origem vietnamita, Ching Hai oferece aos seus seguidores o Método Quan Yin, uma contemplação da luz e do som internos, e requer o seguimento de alguns preceitos. Um deles é o de não tirar a vida de seres sencientes. Anos depois, Bettina adotou o veganismo e, com ela, toda a sua família: os seus dois filhos, um de 18, outro de 20, são veganos desde que nasceram, e o seu marido acabou adotando esse estilo de vida com o passar dos anos.


Bettina Adank em sua fazenda. Foto: Acervo pessoal da autora

Desde que chegamos à fazenda Frutti D’Oro, eu e Beatriz (Bea), a minha companheira de aventuras, também adotamos o veganismo, não só por questões éticas, mas também porque eu comecei a perceber, através da culinária sofisticada da minha nova amiga, que nós realmente não precisamos de ovo e leite para comermos pratos que tocam os nossos corações: bolo, torta, queijo, doces cremosos, panquecas. Enquanto, para mim, foi relativamente fácil adotar uma dieta vegetariana, o veganismo sempre me pareceu um passo além – que já cheguei a dar, quando adolescente, mas cujo resultado foi o excesso de consumo de carboidrato, sensação de fraqueza e sentimento de isolamento social. O veganismo sempre me pareceu a dieta restritiva par excellence e sabemos que nós, seres humanos, gostamos de abundância, possibilidades e facilidades.

Por um acaso ainda (ou por um destino? Não sabemos), a chave virou quando eu me deparei com pratos deliciosos, 100% veganos, feitos com frutas, legumes e grãos produzidos na região. O que se chama, no inglês, de plant-based diet – uma dieta simplesmente baseada em plantas.  (É preciso apenas lembrar que muitas pessoas que adotam uma dieta baseada em plantas não necessariamente são veganas, uma vez que o veganismo se estende para outras searas do consumo humano, como vestimentas e cosméticos, e está mais ligado a uma mudança profunda de comportamento dos humanos com relação aos animais).

Além disso, foi aqui que comi o melhor bolo da minha vida: um bolo de cenoura e laranja, recheado com geleia de laranja e kumquat, uma espécie de laranjinha meio amarga, mas deliciosa, muito comum na Itália. Aqui eu também descobri que comidas deliciosas como queijos féta e ricota, nutela, torta folhada, pizza e sushi também têm versões veganas igualmente atrativas ao paladar. Nós nos empolgamos tanto com estas descobertas, que a Bea criou um canal no Youtube, chamado Animals off the Table, onde Bettina apresenta as suas (e também as nossas) receitas favoritas. 

Como fazer hambúrguer vegano:

O veganismo, na cozinha, está preocupado não apenas com a criação de pratos livres de sofrimento animal, mas também com uma agricultura livre de venenos. Uma vez que as plantas são centrais nessa dieta, é preciso que elas não estejam envenenadas. Assim, aqui temos a preocupação de comer local (eu preciso confessar que, às vezes, abrimos algumas exceções e compramos bananas do Equador) e de comprar comidas livres de agrotóxicos, como fertilizantes químicos, pesticidas e herbicidas. Sabemos que, no Brasil, consumir produtos agroecológicos é, muitas vezes, um privilégio das classes média e alta. Mas, ainda assim, nem quem pertence a essas classes se esforça para consumir dos agricultores de base agroecológica (neste link, você fica sabendo de várias iniciativas agroecológicas no Brasil). 

Por uma série de acontecimentos aparentemente aleatórios, cujo fundo desconheço, mudamos um hábito que parecia imutável, de tão sólido. Duro como uma pedra. E é uma maravilha se sentir aberto a mudanças, não só porque a vida nos provoca o tempo inteiro a sermos maleáveis, mas também porque existe uma sensação muito boa em dançar conforme a música. Aliás, como diz uma canção da série Transparent, epígrafe deste texto, “fuja da casa de seu pai, pois há uma terra que vou lhe mostrar”. E aqui ecoam as palavras de Deus para a Abrãao, em Gênesis 12:1, quando disse: “Saia de seu país, de seus parentes, e vá para a terra que vou lhe mostrar”. Deus promete a Abrãao terra, bênçãos e companhia, desde que ele abandone a casa de seus pais (seu “país”). Quando abandonamos nossos hábitos, também encontramos outros tesouros. 


Oliveiras da fazenda Frutti D'Oro, na Itália. Foto: Acervo pessoal da autora

OUTROS CAMPOS
Porque o veganismo é um estilo de vida, o veganismo de Bettina Adank não se restringe à sua cozinha, contudo. Nos campos, ela também adota práticas veganas de agricultura, todas muito simples – bem mais simples, aliás, do que as práticas da agricultura convencional. Para adotar essas práticas, no entanto, é preciso mudar um outro hábito: o de se pensar e se sentir como mais importante do que os outros animais não-humanos e a natureza. Para adotar o veganismo, é preciso sair do pedestal da excepcionalidade humana, caracterizada por esta ideia consensual de que somos mais especiais porque somos dotados de “alma”, de “razão”, de “criatividade”,  de algo “muito excepcional” que os outros animais, na nossa imaginação, não possuem.

Como muito bem colocou o filósofo Jacques Derrida no ensaio O animal que logo sou, citando Montaigne, este um defensor dos animais avant la lettre: “Interpelando o homem que ‘retalha os animais seus confrades e companheiros, e lhes distribui tal porção de faculdades e de forças como bem lhe convém’, ele [Montaigne] se pergunta – e a questão, então, não é mais tanto o animal, mas a segurança ingênua do homem: ‘Como ele conhece, pelo esforço de sua inteligência, os movimentos internos e os segredos dos animais? Por qual comparação entre eles e nós, conclui pela animalidade que lhes atribui? Quando eu brinco com minha gata, quem é que sabe se ela passa seu tempo comigo mais do que eu o faço com ela?’”.

Em outras palavras, como nós, animais humanos, podemos falar sobre a inteligência e a sensibilidade dos animais, se nós nunca habitamos a sua pele? Como podemos tecer considerações tão assertivas sobre aqueles que são radicalmente outro? Quem disse que os animais não têm alma, razão, criatividade, de uma forma específica que seja apenas deles?

O abandono do antropocentrismo – esta ideia muito consensual de que o centro do mundo são os seres humanos – nos coloca em pé de igualdade com outros animais não-humanos e com a natureza. Quando isso acontece, mudam-se os modos como comemos, cuidamos dos nossos animais, nos vestimos e praticamos culturas agrícolas, por exemplo. Pouco se fala sobre o que ganhamos quando adotamos o veganismo e muito sobre o que perdemos ao adotar este estilo de vida. Há muitos ganhos, mas o ganho principal é o de se sentir capaz de fazer laços com seres de outras espécies, que, como nós, também estão neste planeta para viver bem e para morrer decentemente. Esta abertura para estabelecer relações com sujeitos não-humanos, aliás, está prenhe de potenciais politicamente disruptivos, como bem colocou a filósofa Donna Haraway em Staying with the trouble, livro no qual as linhas de fuga do “capitaloceno”, como ela chama a nossa “era capitalista”, são traçadas simultânea e conjuntamente por animais humanos e não-humanos, inclusive plantas. E corais.

Esta “saída do pedestal” capaz de criar uma outra “cosmopolítica”, para usar os termos da filósofa Isabelle Stengers, orienta as práticas agrícolas de Bettina. Sobre as suas escolhas no cuidado com a terra, ela justifica: “Trata-se de uma cocriação. A natureza é uma parte desta criação, a pessoa que cuida da terra é a outra parte. Para que as coisas funcionem, é preciso que você trabalhe com a natureza. E não que você domine a natureza. Esta é a atitude básica”. Bettina se formou como agricultora de maneira autodidata, através da leitura de livros, de observações, de testes práticos, mas esta instrução sempre se fez em pé de igualdade com o outro agente da criação: a natureza.


Bárbara e Bettina na fazenda Frutti D'Oro. Foto: Acervo pessoal da autora

“Você observa e aprende com ela algumas lições. Você também precisa ver o que funciona em um clima particular, mas é preciso ser flexível. Você não pode ir daqui para o Brasil e aplicar os mesmos princípios. Não, você precisa observar e aprender. É preciso ser humilde para aprender. Não podemos dizer: eu, como ser humano, estou acima da natureza e, por isso, eu a domino. Além disso, se eu trabalho com a natureza, eu tenho menos trabalho e melhores resultados”, ela me explica.

De maneira mais objetiva, esta cocriação se expressa através de escolhas que “imitam” como as plantas crescem na natureza espontaneamente. “Não existe monocultura ou linhas retas na natureza. Existe crescimento associado em diferentes níveis, por exemplo”, detalha Bettina. No mês passado, nossa anfitriã realizou, na horta que criamos, um tipo de plantio associado chamado de “três irmãs”. A plantação, praticada por alguns povos indígenas norte-americanos, consiste em cultivar juntos, exatamente como “irmãos”, abóbora, milho e feijão – mais ou menos como a plantação de milho, feijão e mandioca no Brasil. As três plantas se beneficiam reciprocamente: o milho fornece uma estrutura para o feijão escalar, dispensando a necessidade de estacas; o feijão fornece nitrogênio ao solo, utilizado pelas outras plantas, e a abóbora se espalha pelo solo, oferece sombra, mantém a umidade e ajuda a prevenir o aparecimento de ervas daninhas.

Trabalhar com a natureza significa, portanto, entender a sua linguagem para se comunicar com ela de maneira que não só nós, mas ela, também seja beneficiada. Isto porque, no final das contas, aqui não se trata de um jogo de soma zero: como nós dependemos profundamente da natureza, se ela perde, todos nós perdemos. Se é óbvio que nós, animais humanos, perdemos com a destruição da natureza, não podemos afirmar com tanta convicção que a natureza perderá com o desaparecimento dos humanos. O que vimos, como efeitos do confinamento gerado pela pandemia, foi que a natureza, na verdade, se regenera com a nossa ausência.

Trabalhar com a natureza também significa, de maneira prática, favorecer a reprodução de espécies fundamentais para a agricultura, como abelhas, que apoiam o crescimento de árvores, flores e outras plantas. Em Frutti D’Oro, em cada canto, nos encontramos com frondosos arbustos de alecrim, verdadeiros chamarizes de abelhas. Como se trata de uma fazenda vegana, aqui não se “produz” mel de abelhas, pela razão muito simples de que, para ter mel de abelha, os seres humanos, na verdade, roubam das abelhas uma produção duramente cultivada e extremamente necessária para a sobrevivência de sua complexa colônia. Em troca, o que eles deixam para elas é água com açúcar, e este intercâmbio revela-se, para os veganos, não só como injusto, mas também como extremamente danoso para a vida das abelhas.

 
Flores e frutas atraem abelhas, que são fundamentais. Foto: Acervo pessoal da autora

Trabalhar com a natureza também significa criar corredores verdes capazes de regenar os espaços que já foram destruídos. “É muito difícil criar biodiversidade em uma espaço devastado, por isso é tão dramática a destruição de uma floresta de milhares de anos, como a Floresta Amazônica. Não dá para você refazê-la. O único jeito é tentar criar corredores a partir do que restou da floresta, para tentar prolongá-la”, explica Bettina, que, como a Greta Thunberg, parece integrar o rol de protetores da floresta nascidos em um continente onde as florestas já foram dizimadas.       

Por uma série de acontecimentos, mudamos o hábito de pensar que a natureza é a nossa parceira neste projeto que deveria ser coletivo de viver bem e morrer decentemente. São muitas e variadas as causas que vêm desde a modernidade, como a expropriação dos campos, a divisão de gênero do trabalho e o estabelecimento do capitalismo como sistema socioeconômico, por exemplo, como nos conta a historiadora Silvia Federici no livro Calibã e a bruxa. Nos campos, o que acontece é que a agricultura convencional simplesmente empobreceu os agricultores, hoje à mercê das indústrias química – que produz sementes, grãos, pesticidas e fertilizantes químicos – e mecânica, encarregada da produção de maquinário. Sem falar dos bancos, que incentivam os empréstimos. No Brasil, os chamados pacotes tecnológicos.           

“Eu vi uma família de agricultores se destruir, porque eles começaram a comprar máquinas muito grandes, crentes de que, assim, produziriam mais e fariam mais dinheiro. Compravam sempre mais, até chegarem à ruína e o pai se suicidar, porque a dívida era imensa. Para mim, foi traumático como experiência”, me conta Bettina. Na Suíça, onde ela nasceu e cresceu, a agricultura familiar é bastante presente, mas ela não se vê livre da intensa propaganda à favor do uso de química e maquinário.

Por exemplo, no último dia 13 de junho, o povo suíço foi votar a favor ou contra uma iniciativa intitulada “Por uma Suíça livre de pesticidas sintéticos”. O comitê popular justificou o projeto com o argumento de que os pesticidas sintéticos são substâncias químicas muito tóxicas que contaminam os rios, a água potável, os alimentos e os corpos. Já o Conselho Federal e o Parlamento Suíço manifestaram o seu posicionamento antecipadamente e a recomendação deles foi o de que a população votasse contra essa iniciativa. Para o governo, a proibição de usar pesticidas iria muito longe: “Ela limitaria o aprovisionamento de gêneros alimentares suíços e a escolha de gêneros alimentares importados. Ela tornaria as regras de higiene mais difíceis a respeitar na produção e infringiria os acordos comerciais internacionais”, como justificam no livro didático distribuído a todos os cidadãos suíços meses antes de cada votação. A iniciativa, que quis proibir o uso de pesticidas sintéticos na Suíça, perdeu. Em outras palavras, a indústria tem muito poder em todos os governos.

A história de suicídio contada por Bettina não se trata de uma exceção à regra. Como aponta Vandana Shiva, no seu Ted Talks intitulado Solutions to the food and ecological crisis facing us today, em uma década, de 1997 a 2007, 200 mil agricultores cometeram suicídio na Índia. Segundo dados do Escritório Nacional de Registros Criminais da Índia, 11,2% de todos os suicídios neste país são cometidos por agricultores. Este surto de suicídio, com frequência pela ingestão de pesticidas, ocorre desde 1970, na Índia, porque os agricultores não conseguem pagar as dívidas contraídas com fiadores privados e bancos para comprar maquinário e químicos. O valor do produto final da agricultura é tão inferior aos gastos com máquinas e pesticida,  que normalmente o governo precisa financiar os agricultores para que eles consigam arcar com gastos tão exorbitantes, mas tidos como necessários. No mesmo dia 13 de junho, aliás, o povo suíço também votou outra iniciativa popular sobre se o governo deve ou não subvencionar agricultores que usam pesticidas e antibióticos. Para o governo, sim. Para o comitê da iniciativa, não. Mais uma vez, a população votou a favor da subvenção do uso de pesticidas na agricultura.

Conheça mais Vandana Shiva:

A questão aqui é que nós somos levados a acreditar que produzimos mais com pesticidas, fertilizantes sintéticos e máquinas, mas os efeitos dessa produção são extremamente danosos. Os pesticidas e fertilizantes sintéticos destroem o solo e poluem as águas. As máquinas requerem uma plantação menos complexa e mais padronizada, logo menos biodiversa. Além disso, sequer podemos dizer que realmente produzimos mais dessa maneira: a produtividade de um terreno usado com plantio associado, por exemplo, é muito maior do que a de um mesmo pedaço de terra utilizado para a monocultura.

A solução para o problema do empobrecimento dos agricultores e das comunidades locais requer, então, que descartemos as opções que nos são oferecidas como se fossem as nossas únicas possibilidades. Como defendia o agricultor japonês Masanobu Fukuoka, “não fazer absolutamente nada, essa é a melhor forma de agricultura”. Fukuoka lançou os princípios de uma agricultura natural, tais como “não revolver”, “não arrancar os matos”, “não passar agrotóxicos, nem adubos químicos”. Embora haja ressalvas com relação a se, de fato, esses princípios funcionam em todos os lugares do mundo, é fato que uma agricultura menos automatizada e mais natural tem demonstrado melhores resultados para os agricultores, embora não necessariamente mais lucros para as grandes indústrias química e mecânica.

Voltar ao básico e ao simples também é a proposta do banco de sementes Navdanya, na Índia, lançado por Vandana Shiva e outros ativistas ambientais. A proposta da organização não-governamental é simples: preservar sementes nativas em risco de extinção pela indústria, que não só tem passado a produzir sementes híbridas, como também tem incentivado a plantação de monoculturas na Índia. No documentário Seeds of life, dirigido por Usha Albuquerque e vencedor do Prêmio Nacional do Filme na Índia, vemos casos de como o banco de sementes tem salvado agricultores de colheitas mal-sucedidas pelo simples compartilhamento de sementes nativas desaparecidas, mas preservadas no banco.

Aqui, na região de Abruzos, a cooperativa Cogecstre, situada em uma cidade muito próxima, chamada Penne, apoia os agricultores locais que cultivam espécies de trigos antigos e encarrega-se da produção da farinha de “farro”, um tipo de trigo antigo plantado na região. Em Abruzos, aliás, existem vários grãos antigos, entre eles a “solina”, considerada a mãe de todos os trigos. Devido a iniciativas como a da Cogecstre, o farro não caiu no esquecimento e hoje é uma semente muito apreciada em países da Europa, porque muitas pessoas que demonstram alergia ao trigo tradicional não possuem intolerância a grãos antigos.

Por uma série de acontecimentos, abandonamos o hábito de nos pensar como parte da natureza e adotamos o de nos considerar como mestres dotados do poder de manipulá-la a nosso bel-prazer, como quisermos. Esquecemos onde estavam as nossas poderosas sementes e passamos a comprar versões manipuladas no mercado, achando que elas seriam, na verdade, melhores do que as nossas. Deixamos de plantar em associação, porque nos disseram que plantação séria é de uma só variedade. Passamos a achar que quanto mais trabalhamos a terra, mais produtivos seremos, quando se trata exatamente do contrário. Também esquecemos as nossas receitas de fertilizantes biológicos e deixamos de reconhecer o valor do trabalho que se faz com o corpo. Viramos e reviramos a terra, até que toda a sua camada viva e nutritiva esteja tão lá embaixo, que ela já não nos serve de solo fértil. Sem falar das ricas e biodiversas florestas, que derrubamos porque nos disseram que comida de verdade é pedaço de corpo de bicho morto.

Por um acaso, deixamos para trás os hábitos que nos tornavam livres e autônomos, para adotar hábitos que nos transformam em reféns de quem tem dinheiro. No entanto, é preciso que acordemos deste pesadelo kafkiano criado pelo capitalismo. Para isso, é preciso que sejamos capazes de questionar aquilo que nos é dito como certo e valioso. É uma mudança de paradigmas.

Conheça mais Fukuoka: 


MESMA CIDADE
Não é fácil nadar contra a corrente, mas, às vezes, a corrente de uns é a contra-corrente de outro. Isso significa que nadar contra a corrente é da própria natureza de algumas pessoas. Desde os primeiros dias em que cheguei a Frutti D’Oro e conheci Bettina, me lembrei da protagonista do livro Sobre os ossos dos mortos, da escritora Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2018. Ela, Janina Dusheiko, professora de inglês aposentada, assume como pessoal uma guerra contra um dos principais hábitos das pessoas que vivem na pequena cidade onde vive: caçar animais. Uma radical defensora dos bichos, Dusheiko indigna-se cotidianamente ao se encontrar com animais mortos nos arredores de seu vilarejo. É tão radical o sentimento de injustiça que ela sente pelos animais, que ela vai com frequência à delegacia para fazer denúncias de “homicídio”. É óbvio que ela é tomada como a louca da cidade, quando, na verdade, ela é a mais lúcida de todos…

Bettina convive, em Frutti D’Oro, ao lado direito do terreno, com uma fazenda de criação de porcos. O abate não acontece lá, mas, quando chegam à idade de seis meses, eles são levados por um caminhãozinho para serem mortos. Enquanto não morrem, os porcos vivem em situações muito precárias, amontoados em espaços pequenos, a despeito de seu porte nada modesto. Nessa mesma fazenda, um cão de campo, cujo instinto é o de correr livremente pelos lugares, passava o dia enlaçado, sem se mover. Há poucos dias, esse cão majestoso faleceu. Ao lado esquerdo do terreno, um outro cão passa o dia confinado – e contra a lei italiana de se manter um cão acorrentado. Bettina experiencia cotidianamente um sentimento de dissonância entre as próprias convicções e os hábitos da maior parte das pessoas. Como Madame Dusheiko. Além disso, ambas também têm em comum o fato de terem estudado Literatura.

Adotar hábitos não incorporados pela sociedade de maneira mais ampla nos coloca, é verdade, em uma certa posição de isolamento social. Mas por que, afinal, precisamos assinar embaixo de todas as criações humanas, como se a cultura produzida pelos humanos fosse, enfim, incontestável? Esta é uma pergunta que deveria surgir de maneira ululante em tempos nos quais o produto da cultura de comer animais é, além do churrasco, uma pandemia aparentemente infindável. É curioso como, neste momento tão dramático, poucas pessoas têm colocado em questão o hábito de comer animais não-humanos, mesmo sabendo que a pandemia surgiu por causa do consumo humano de animais não-humanos.

A tendência, no entanto, é que as as pessoas que questionam hábitos culturais sejam tratadas com desprezo ou até sarcasmo pelas pessoas mais adesionistas, e justamente porque a cultura precisa de crença social para se sustentar. Não é conveniente para ninguém questionar a cultura, mas é preciso fazê-lo, simplesmente porque cultura não é dogma e, para que seja viva, ela precisa ser dotada de uma certa plasticidade e estar pronta para mudanças. A “agricultura”, aliás, também é uma expressão de cultura. E ela também pode, se nós quisermos, mudar. 

Durante o tempo em que estou em Frutti D’Oro, eu perdi a minha avó, que, por um acaso, e apesar de todos os nossos cuidados, contraiu a Covid-19. Durante esse tempo, muitas pessoas que eu conheço também morreram. Hoje, é impossível não pensar, com um exato sentimento de indignação, que nós, animais humanos e não-humanos temos o direito, como seres vivos, de viver bem e morrer decentemente. Para isso, a nossa cultura precisa mudar. Os nossos campos e as nossas cidades também precisam mudar. Nós precisamos mudar. E muito.


 
Hortaliças livres de agrotóxicos na Frutti D'Oro. Foto: Acervo pessoal da autora

BÁRBARA BURIL, jornalista e doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Filosofia e graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco. Além disso, vegana e amante da natureza.

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