Ensaio

O caráter antecipatório dos sonhos sob o nazismo [PARTE 2]

Recolhendo as marcas profundas das almas dos perseguidos e opositores, em 'Sonhos no Terceiro Reich', Charlotte Beradt estruturou cartografia dos sonhos

TEXTO CARLOS FERRAZ

ILUSTRAÇÕES HALLINA BELTRÃO

03 de Julho de 2023

Ilustração Hallina Beltrão

[PARTE 2 | continuação do ensaio da ed. 271 | julho de 2023]

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Ao lado dessas preocupações políticas mais amplas, o trabalho de Beradt solicita aos psicanalistas um dever de casa específico: compatibilizarmos e avaliarmos criticamente o novo tipo de sonho colhido pela autora com base nos modelos presentes no corpo conceitual da psicanálise.

Um mundo fantasmagórico foi desvelado por um mensageiro à altura. Que espécie de sonhos são esses que deram acesso ao futuro?

Exaltando a escolha do objeto, o historiador Reinhart Koselleck comentou: “essa documentação dos sonhos constitui uma fonte de primeira categoria. Ela revela camadas que nem mesmo anotações de diários conseguem mostrar” (...) “comprova como pode ser proveitosa a inclusão de experiências de sonho na investigação da história cotidiana.”

Não há razões para romantizar ou idealizar a capacidade dos sonhos para desvelar a realidade do Eu e do mundo. Assim como os pensamentos, sonhos são aptos a esclarecer ou obscurecer o entendimento de um fato, a ajudar ou prejudicar uma decisão. Não por acaso Beradt precisou fazer uma triagem. Seria tentador afirmar que sonhar é preciso; pensar, nem tanto, mas, certamente, inexato e enganoso. No entanto, embora padeçam das mesmas contingências e limitações de todo ato humano, os sonhos oferecem uma perspectiva única. Indicam o que imaginamos dormindo, quando nos encontramos relativamente despidos das bordas estreitas da consciência, da atenção focada, do rigor das defesas psicológicas e da atividade de checagem que o pensamento nos impõe acordados. Assim como outras expressões do inconsciente, os sonhos são as primeiras e as últimas revelações da significância de uma situação. Eles anunciam a importância ainda não percebida de algo ou de alguém, muito antes do pensamento ou da consciência se darem conta. E são as últimas aparições do que já não nos ocupam a atenção consciente. Funcionam como um filtro que captura o valor emocional de um fato subjetivo na sua condição subliminar, seja na direção crescente ou decrescente de importância.

Talvez pela franqueza e intensidade de suas imagens, pela arte de sua fabricação, via formas concisas e figuradas, ou pelo modo como aparecem aos seus artífices, sob a forma de expressões involuntárias e ingênuas, os sonhos promovam insights, cativem e encantem. Soam convincentes como um segredo contado de forma hesitante ou como crianças e bonecos no papel de perseguidores em um filme de terror. A impressão é que dispomos em nosso mundo interno do auxílio de roteiristas e diretores de cinema e teatro que, com a consultoria de especialistas, assumem a gestão do espírito ao apagar das luzes.

Não é novidade que sonhos são estradas reais para o conhecimento de si. A teoria e a técnica psicanalíticas têm seu marco de fundação no livro A interpretação dos sonhos, de Freud, publicado em 1900. Foi recuperado pela psicanálise um saber tradicional que entendia que os sonhos continham tramas reveladoras. Embora seja um tanto frustrante a falta de inteligibilidade de boa parte deles – há os que nem Freud explica: “um certo número de sonhos que acontecem durante a análise são intraduzíveis” –, não são raros os casos de psicanalistas que se viram conduzidos para fora de labirintos pelas pistas de sonhos.

Em uma ocasião, me vi cuidando de um jovem aprisionado a sérios e incapacitantes episódios de angústia. Orbitava em torno da narração de seu sofrimento sem que qualquer ato falho, chiste, afeto, lembrança ou pensamento viesse em nosso auxílio. “Tive uma crise de pânico, acho que vou ter uma nova crise de pânico, estou com medo de voltar a sentir pânico, faça alguma coisa para interromper esses pânicos” eram as descrições e demandas fáticas e inerciais, repetidas incessantemente ao longo das sessões. Foram os sonhos, relatados com descrença e uma certa má vontade, que nos levaram pouco a pouco a acessar memórias de uma casa onde ele havia morado na infância, e em cuja atmosfera orbitava uma intrigante história acerca da morte de sua avó. Desde então, não falamos mais sobre pânico.

Há várias histórias semelhantes na literatura psicanalítica. Mas em todas elas os sonhos iluminam o indivíduo, e não o mundo. O acervo de sonhos de Charlotte Beradt, em sintonia com o contexto histórico em que foi coletado, vai no sentido inverso: não detalha o que se passa no interior das tramas e memórias do eu, mas na forma como foi processada a realidade, que se insinua em gestos invasivos e violentos, diretos e indiretos. Poucas vezes na história foi possível assistir a uma sobreposição tão didática entre as lógicas da vida política e do inconsciente.

Diante desse admirável e intrigante repertório, Beradt escreveu ao editor Karl Otten para se aconselhar sobre o que fazer. Disse na ocasião: “Como podemos e devemos publicar isso é o que pergunto ao melhor dos editores. De modo geral, o que me interessa, naturalmente, é a questão humana: o que o psiquiatra ou o analista dizem sobre isso vem em segundo plano.”

Soa estranho que um material tão próprio à psicanálise não lhe fosse endereçado. Sem dúvida, o rechaço não se devia ao desinteresse, mas ao temor ao que poderiam fazer com um material tão singular. Talvez, reduzi-los a sonhos comuns e identificar nas entrelinhas das narrativas oníricas sobre o nazismo alguma referência a Édipo Rei. O que significaria conferir ao diferente o invólucro do mesmo, desconsiderando a tese forte do livro que advogava o significado político desses sonhos. O enigma a ser desvendado era como o sonho tinha deixado de ser um exercício de privacidade para se tornar uma peça política, deixado de ser retrospectivo para se tornar prospectivo, de ser cifrado para se tornar uma demanda de socorro explícita.

Não temos na psicanálise sonhos políticos ou sonhos de realidade em catálogo. Há dois modelos no repertório freudiano. O sonho de realização de desejo e o sonho traumático. A nossa hipótese é que os sonhos-testemunhos se assemelham, mas diferem de ambos, e se situam entre eles. Vejamos cada um em suas configurações gerais.

Certamente, os sonhos-testemunhos não são tentativas disfarçadas de realização alucinatória (que ocorre no âmbito da fantasia) de desejos recalcados (censurados). Estes últimos resultam da dimensão íntima e clandestina do eu, que trabalha nas horas em que a consciência repousa e enfraquece os seus controles, para contrabandear e permitir o consumo, embora maquiado, distorcido e precário, de seus artefatos proibidos.

E o que seriam esses artefatos? O passivo de desejos sexuais, agressivos e narcísicos cujas satisfações foram negadas pelo outro ou retidas na alfândega das normas morais internas e externas, em nome da estabilidade emocional do indivíduo e da convivialidade. Para a montagem dessa realização alucinatória, o psiquismo fará uso de restos diurnos – registros da realidade, sob a forma de pensamentos, diálogos e cenas, que ativam desejos inconscientes e ajudam a construir o palco e o enredo nos quais tais impulsos, camuflados por mecanismos de defesa do trabalho do sonho (metáforas, metonímias e figurações), irão atuar.

Os sonhos convencionais realizam desejos e, ao mesmo tempo, protegem o sono. Executam um duplo trabalho: amenizam as tensões internas, de modo a não incomodarem o psiquismo durante o adormecimento, e, ao mesmo tempo, agenciam uma realização discreta e silenciosa dos impulsos envolvidos, a fim de não acordarem o fiscal ético. Desempenham uma função excretória e compensatória para a economia dos desejos inconscientes e, por conta disso, uma função estabilizadora de guardião do sono. O eu que sonha e transgride e o eu que resguarda o sono são versões de um mesmo agente duplo que sustenta, nessa dinâmica de supervisor e patrocinador do desejo, um equilíbrio diplomático, tenso e volúvel, entre as diferentes exigências do mundo interno. Dispondo de sonhos de realização disfarçada de desejo em cartaz, assistimos em nossas madrugadas a thrillers sob a aparência de comédias românticas. E alienados de suas reais intenções, dormimos profundamente nas poltronas de nosso cinema particular.

Um exemplo de sonho convencional, ao mesmo tempo cifrado e didático, é o de uma mulher que sonha dirigindo o carro do casal em marcha a ré, com o marido no banco do passageiro, e em alta velocidade, trafegando por ruas de sua cidade de origem. Até o momento em que chega à frente da casa onde morou com os pais, desce do carro e diz ao marido para não a esperar. Estranhou bastante o que poderia querer dizer esse sonho, mas falando livremente sobre seus detalhes, percebeu que ainda que não cogitasse uma separação, enredada em um momento difícil do casamento, já a introduzia com esse movimento de retorno à casa dos pais.

São mais ou menos assim os sonhos de realização de desejos. No final das contas, esclarecedores e, muitas vezes, libertadores. Podemos resumi-los a encenações dinâmicas, construídas por fatores internos (subsidiados por restos diurnos), voltadas para a intimidade, disfarçadas pela censura, motivadas por desejos de afirmação de si, sexuais e agressivos e com papel decisivo na homeostase do psiquismo.

Em contraste, os sonhos-testemunhos são atividades oníricas que prospectam ameaças políticas, despertam angústias e visam soluções de sobrevivência, já debitando custos físicos e mentais significativos.

Estabelecida a diferença, surge, então, a dúvida: na qualidade de exercícios oníricos de antecipação de riscos, os sonhos-testemunhos não seriam apenas sonhos de angústia e de punição? Sonhos de angústia e de punição, os conhecidos pesadelos, foram definidos por Freud como um subtipo de sonhos comuns. Caracterizam-se como sonhos cujas intenções são descobertas pela censura, por conta de falhas no trabalho de disfarce do desejo recalcado. A consequência é que o eu-desejante fica exposto à punição do juiz interno. A cena sonial é então composta pela realização da função fiscalizadora e punitiva da norma no lugar, e em função, da realização do desejo. Seriam os sonhos-testemunhos, analisados por essa ótica, meros sonhos convencionais de angústia?

É uma distinção importante a ser feita. Sabemos que os sonhos de desejos censuráveis que operam sem os devidos disfarces assemelham-se a histórias de ninar heréticas que, no lugar de embalarem o sono das crianças por meio da lapidação de seus conflitos emocionais típicos, colocassem a descoberto as suas angústias mais inquietantes: de ser desamada e abandonada pelos pais, por força de contingências exteriores ou como retaliação por tê-los danificado ou destruído com o poder imaginário de seus ódios, invejas, rivalidades e ciúmes.

Mais que os adultos, as crianças necessitam de filtros que as protejam da realidade e de suas próprias emoções. Em especial, do que se passa com elas – o que desejam, pensam ou profetizam – em seus ataques de raiva dirigidos a pais ou irmãos, quando se veem frustradas em suas demandas de amor. Não é fácil olhar de frente para a enfant terrible que mora em seus desvãos. Um bom tempo ou uma vida inteira se passa para assumirmos que o Mr. Hyde não é uma idiossincrasia de Dr. Jekyll. Não por acaso, sofremos tanto com pesadelos. Pais e cuidadores sabem que nas precauções para que as crianças não se deparem com o que ainda estão inaptas a metabolizar, sempre escapa algo...

Aconteceu na relação com os meus filhos um deslize desse tipo, e que se tornou com o tempo engraçado. Com 7, 5 e 3 anos, Lara, Liz e Benício foram pegos de surpresa diante de um espelho: o fantástico curtaVinil verde, de Kleber Mendonça Filho. Um atípico conto de fadas que apresenta, com poucos filtros de sublimação, até onde a culpa infantil é capaz de chegar, em suas composições com o amor, a agressividade, a desobediência e o castigo. Não vou dar spoiler. O filme está no YouTube.

E vale esclarecer: os pequenos conseguiram o acesso a esse filme após o convencimento, com pedidos insistentes, do meu filho mais velho, João, ainda bem jovem à época, que começava a curtir o bom cinema. Provavelmente, farejou na obra de Kleber uma dimensão híbrida de filme adulto com temática infantil. “Seria próprio para crianças? Será que os meus irmãos pequenos, que insistem tanto para ver um filme de terror, poderiam assistir?” O nosso providencial: “Nãããão!!!” chegou atrasado.

Desde lá, as luvas verdes presentes no filme, associadas aos danos fatais da trama, ocupam lugar entre as alegorias do medo profundo no imaginário de minhas crianças. Sem terem escutado a entrevista de Kleber, já incorporaram devidamente a recomendação irônica do diretor: “Não usem luvas verdes!”. Conselho em última análise retórico, pois é o mesmo que dizer: “Não sejam terríveis!”. Fico devendo a elas uma sessão de Vinil verde no futuro para que ressignifiquem a potência que experimentaram então como fantasma, dessa vez como obra de arte.

Sentimentos autopunitivos e culpabilizantes desse tipo se destacam em sonhos de angústia. Mas seriam equivalentes às aflições encontradas nos sonhos-testemunhos? A resposta é não. Embora sejam ambos sonhos angustiantes, os convencionais são sonhos de punição pelo censor interno, enquanto os testemunhos acertam contas com o censor externo – o Estado e a massa que o venera.

Nos sonhos de punição, eu faço ou desejo o que contraria a norma interna e provoca a ira do superego. Nos sonhos-testemunhos, eu sou o que contraria a norma externa e faço o que me for possível para não ser este indesejável, abrindo mão de meus ideais e me identificando com o agressor ou com o que ele espera de mim. Tudo isso com o apoio progressivo de meu superego, como se cumprisse uma obrigação ou um dever.

Os sonhos comuns de angústia e punição são filhos da ousadia do desejo que, sem o anteparo do devido disfarce, expõe o sujeito-desejante à retaliação ambicionada pelo superego. Enquanto os sonhos-testemunhos são explícitos, filhos da procura por uma saída pela via da cessão e da transigência às expectativas do Outro. Servem, no fim das contas e de forma declarada, ao propósito inverso de prever e evitar a punição oriunda da realidade. O eu abre mão de si mesmo, de sua singularidade e autenticidade. E permite ser substituído por uma sombra de si mesmo que aposta a maioria de suas fichas na garantia de sua sobrevivência.

Expostas as diferenças, ainda seria possível sermos questionados: sob a cobertura do enredo político que caracteriza os sonhos-testemunhos, não haveria a operação disfarçada de desejos íntimos, pessoais e inconfessáveis? Foi exatamente contra essa suposição que Beradt se opôs. Seria decepcionante que nós, psicanalistas, tivéssemos tamanha inabilidade para uma leitura diferencial e aplicada ao contexto do Terceiro Reich. Primeiro, porque não é preciso procurar sentidos ocultos no que está suficientemente justificado.

Lembro uma paciente, moradora de uma comunidade carente do Rio de Janeiro, a quem atendi quando estagiava em um hospital público. Havia tido um surto psicótico após saber da morte do irmão pela polícia. A entrevista da triagem decorreu de forma tensa por conta do estado alterado em que ela se encontrava. Um pouco hesitante, perguntei lá pelas tantas por que a polícia havia matado o seu irmão. E ela respondeu com ar de surpresa e impaciência: “Porque eles não gostam de gente!” Continuei desde então a fazer perguntas pertinentes e impertinentes, e a cometer erros e acertos conforme a minha intuição clínica. Mas havia aprendido a lição. Conheça a realidade de seus pacientes antes de fazer perguntas óbvias. Elas não ajudam na necessária empatia.

Ah, mas não estamos falando de uma interlocução ordinária. Estamos falando do entendimento de sonhos! Certamente os sonhos possuem uma moldura própria, mas não esqueçamos da advertência transmitida por Freud.

Que inferências podemos tirar de um sonho corretamente traduzido? Tenho a impressão de que nisso a prática psicanalítica nem sempre evitou erros e superestimações, em parte por excessivo respeito ante o ‘misterioso inconsciente’. Com facilidade nos esquecemos de que, em geral, um sonho é apenas um pensamento como qualquer outro, possibilitado pelo relaxamento da censura e pelo reforço inconsciente e deformado pela interferência da censura e a elaboração inconsciente.”

Talvez sejamos facilmente levados a um “excessivo respeito ante o ‘misterioso inconsciente’”, o que nos faria achar pouco ou duvidoso o que Beradt extraiu dos sonhos-testemunhos. Seria um desses típicos casos em que o menos é mais.

Segundo, porque há exceções ao uso desse protocolo da censura entre os próprios sonhos convencionais. O que significa dizer que há sonhos transparentes de realização de desejo. Temos os casos dos sonhos infantis, que não são regulados pelo superego e por isso se expressam de forma explícita; e os sonhos de privação de adultos em situações extremas, como naufrágios e expedições, forçados pela fome e pela saudade da casa. São ambos passíveis de serem interpretados literalmente. Por razões análogas aos sonhos de privação, também podemos interpretar os sonhos-testemunhos pelo que apresentam em seu valor de face, uma vez que o impulso psicológico que os anima é o da manutenção da vida (nomeado por Freud como pulsão de autoconservação do eu). Não sendo um impulso transgressivo, pelo menos no contexto em questão, podia se expressar sem disfarces. Não era preciso esconder nem de si mesmo, nem de ninguém, a ânsia de sobreviver. Por conta disso, os sonhos no Terceiro Reich dispensavam um método de deciframento.

O modelo do sonho convencional, embora mantenha semelhanças, não abriga adequadamente os sonhos-testemunhos. Uma referência mais próxima, porém, igualmente parcial, é encontrada na segunda opção do repertório freudiano: os sonhos traumáticos. Quando Freud se deparou com os neuróticos de guerra fez uma constatação heterodoxa: podemos sonhar com a realidade. No caso específico, com as cenas traumáticas experimentadas no front de guerra.

O trauma nesses sonhos não é um mero resíduo diurno da realidade, mas a peça central que protagoniza a cena onírica. A sua ocorrência se dá quando o psiquismo é submetido, de surpresa e sem preparação prévia, a um evento físico ou emocional que viola seus limites de resiliência e excede sua capacidade de defesa e de elaboração, pondo em risco a necessidade vital de sobreviver, física ou psicologicamente. O sujeito é reduzido a um tecido esgarçado na zona atingida pelo trauma. E levado a reencenar continuamente, em estado de vigília, mas principalmente em sonhos, os acontecimentos chocantes e disruptivos. No texto Além do princípio de prazer (1920), Freud comentou sobre o papel do acidente traumático no sonho:

a vida onírica da neurose traumática apresenta a característica de sempre conduzir o doente de volta à situação de seu acidente, da qual ele desperta com um novo susto. (...) Acredita-se que isto seja justamente uma evidência da intensidade da impressão causada pela vivência traumática, que sempre volta a impor-se ao doente, até mesmo no sono. O doente estaria, por assim dizer, psiquicamente fixado no trauma.”

O leitor deve lembrar de sonhos em que o terror se impõe de súbito e o impede de reagir. Surpresas e descobertas da infância e da adolescência são suficientes para produzi-los. Imagine o que pode acontecer em um contexto de guerra, mesmo para soldados que tiveram a devida preparação. Na guerra e fora dela, a rotina de presenciar cenas de destruição impensáveis, consumadas a cada instante, fratura o sentimento de segurança, assim como a capacidade de integrar e dar sentido. Lançando-nos em um movimento cego e desarticulado no qual iremos falar, gritar, apelar para os deuses, gesticular e pensar repetida e aflitivamente a mesma coisa, sem conseguir dar um passo adiante. Quando não nos faz mergulhar em um estado de colapso e de apatia. A matéria dos sonhos traumáticos é a reencenação dessas situações de desespero e desamparo.

Comparando os sonhos traumáticos e os sonhos-testemunhos percebemos que são da mesma linhagem, mas que não se confundem. Embora sejam produzidos por fatores externos, voltados para a realidade, explícitos (não disfarçados) e motivados pela angústia da ameaça à sobrevivência, é necessário um ajuste no gradiente para encontrarmos o ponto que deflagra estes últimos.

Aproximamos Freud de Beradt com a seguinte pergunta: o que pode acontecer conosco e, consequentemente, com nossos sonhos, se, ao invés de expostos a traumas propriamente ditos, fôssemos submetidos a regimes políticos autoritários e iliberais, nos quais seríamos progressivamente destituídos da privacidade e singularidade que nos caracterizam como indivíduos modernos e ameaçados diuturnamente em nossa integridade física e moral?

***

Aprendemos com os trabalhos de Freud sobre o desamparo – Além do princípio de prazer (1920), Inibição, sintoma e angústia (1926) e O mal-estar na civilização (1930) – que, em estado de ameaça, é da defesa do bem da vida que provém a energia ou a razão de ser das operações fundamentais do psiquismo, dentre elas, a onírica. Situações de emergência ampliam a importância da realidade externa, da qual depende a sobrevivência. O funcionamento psicológico dos cidadãos perseguidos no nazismo, em especial, os seus sonhos, é um caso singular e extremado da tendência fundante do aparelho psiquismo para se subordinar ao ambiente em prol das pulsões de autoconservação. Como escreveu Freud, no texto de 1920:

Ante as dificuldades do mundo exterior, o princípio do prazer desde o início revela-se ineficiente e um perigo para a necessidade de o organismo impor-se ao ambiente. Assim, ao longo do desenvolvimento, as pulsões de autoconservação do Eu acabam por conseguir que o princípio do prazer seja substituído pelo princípio de realidade.”

Assim foi no início do desenvolvimento infantil, e assim podemos supor que voltará a ser toda vez que o nosso senso de segurança entrar em estado de alerta, seja diante de algo contornável ou do que extrapola a sua capacidade de defesa. A diferença é que, dessa vez, a pretendida estabilidade não viria da imposição do organismo ao ambiente, mas do exato oposto. E é sabido que nem assim ela foi possível.

De toda forma, os sonhos produzidos no contexto da ascensão do nazismo se localizavam em um primeiro tempo do trauma. Já estavam sob o império do assédio, mas ainda havia luta coordenada, com chances de triunfo ou de uma solução autêntica, apesar dos pesares. Por sua vez, em uma comparação convergente, podemos pensar que, passado um período de tempo sob essa atmosfera inóspita e cada vez mais asfixiante, os sonhos-testemunhos viessem a se transformar pouco a pouco em sonhos traumáticos.

Esses normalmente são pensados como efeitos derivados de situações danosas impostas de surpresa. O susto, diferente do medo, era a condição sine qua non, segundo Freud, para um resultado traumático. Com os sonhos de Beradt, visualizamos traumas vindouros por desgaste e saturação, derivados de um período de espera sob tensão constante. Nessa perspectiva, uma parcela dos sonhos traumáticos poderia ser repensada como o emblema sombrio da consumação dos riscos advertidos e da derrota das manobras desesperadas empreendidas imaginariamente pelos sonhos-testemunhos.

Beradt colaborou com o que Freud entendeu ser uma linha de pesquisa promissora: “investir na investigação mais aprofundada da reação psíquica ao perigo exterior.” O sonho-testemunho se define como uma operação onírica pré-traumática, na forma de uma variante precária do modelo de sonho convencional. Resulta da alteração da dinâmica clássica de realização disfarçada de um impulso de prazer para a de um ensaio de apreensão temerosa e adaptativa frente a uma realidade ameaçadora, com vistas à proteção da vida ou do que lhe resta. Encontramos nesse espaço intermediário entre os sonhos convencionais e os traumáticos um lugar na malha simbólica da psicanálise para recepcionarmos os sonhos do Terceiro Reich. Mas não sem controvérsias.

Levando em conta as críticas de Freud, em 1920, ao status dos sonhos traumáticos, considerados como produtos do “abalo e do desvio da função dos sonhos de seus propósitos originais”, podemos pensar que a exposição à toxicidade do nazismo, assim como a de qualquer outra forma de vida saída dos fornos dos extremismos totalitários, ou mesmo de análogos encontrados em certas circunstâncias das sociedades neoliberais, imponha alterações importantes ao funcionamento do psiquismo, desvirtuando a autenticidade de seus processos. Sendo assim, é, no limite, ilegítimo nomearmos como sonhos propriamente ditos o que encenamos, adormecidos e adoecidos, imersos na atmosfera repulsiva do nazismo ou de regimes afins.

Assim como não faz sentido chamarmos de sabedoria as ações amadurecidas de crianças que precisam conviver com graves problemas familiares, a ponto de “abandonarem” a infância para assumirem o papel inoportuno de conselheiros dos pais – o que o psicanalista Sándor Ferenczi intitulou como o fenômeno dramático do bebê sábio, com graves consequências para o futuro adulto; assim como beira a desfaçatez considerarmos empreendedorismo a resposta funcional e promissora de pessoas pobres, submetidas de forma involuntária (não se trata de um reality show!) à privação social e econômica; da mesma forma que não existe uma democracia pelo simples fato de existirem eleições; não cabe igualmente designarmos como sonhos as encenações dos nossos tratos com uma realidade política pervertida que nos obriga a pensar, enquanto dormimos, sobre como permaneceremos vivos! Cedendo o uso de nossas palavras mais nobres estamos validando e naturalizando o absurdo.

A patente de uma nova função para os sonhos seria provavelmente negada por Freud. O sonho-testemunho, assim como o traumático, até segunda apreciação, é uma forma abalada e desviada do formato padrão do sonho clássico. Uma espécie de sonho de protesto ou de sonho-sintoma. O que, no final das contas, não é um status negativo para os sonhos de Beradt. Funciona como uma eloquente denúncia política.

É certo que o sonho convencional de desejo não é a nossa única manifestação onírica. Mas bem que poderia ser. Por estar aninhado no ethos da cultura do individualismo e da intimidade, e dependente da estabilidade política e institucional de um projeto de vida civilizado e liberal, avaliza a virtude do ambiente que lhe serve de habitat.

A vida psicológica nesses termos não é, obviamente, um mar de rosas. A trajetória dos indivíduos pode se complicar e se tornar custosa, independentemente da qualidade do desenho do Estado. Mas, parafraseando Winston Churchill, lidar com desejos e normas, em um ambiente democrático de negociações de conflitos, com direito à cidadania, à individualidade, à intimidade, a sonhos transgressivos e a um ou outro escape, é a dinâmica psíquica mais difícil de manejar excetuadas todas as outras.

CARLOS FERRAZ, psicanalista, professor de Psicologia da Fafire (Faculdade Frassinetti do Recife) e doutor em Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ. carlosshf36@hotmail.com.

HALLINA BELTRÃO, designer e ilustradora.

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