O caráter antecipatório dos sonhos sob o nazismo
Recolhendo as marcas profundas das almas dos perseguidos e opositores, em 'Sonhos no Terceiro Reich', Charlotte Beradt estruturou cartografia dos sonhos
TEXTO CARLOS FERRAZ
ILUSTRAÇÕES HALLINA BELTRÃO
03 de Julho de 2023
Ilustração Hallina Beltrão
[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]
Após deixar a Alemanha em 1933, o filósofo e teólogo Paul Tillich registrou em sonhos a sua experiência da ascensão do nazismo: “Durante meses sonhei com isso, literalmente, e acordava com a sensação de que toda a nossa existência estava sendo transformada. Durante a vigília, acreditava que poderíamos escapar do pior, mas meu subconsciente sabia bem mais.” Sem os mesmos autoenganos de que somos pródigos quando acordados, os nossos sonhos parecem mais francos com os afetos. O mesmo se passa com as piadas e os ditos espirituosos. A advertência de T. S. Eliot de que “a raça humana não pode suportar tanta realidade” faz crer que necessitamos de alternativas à tomada de consciência para abrigar o que nos parece estarrecedor em conjunturas de derrocada ética e humanitária. Às vezes, nem assim; mas há verdades que só admitimos em sonhos.
A jornalista Charlotte Beradt se deu conta disso. E, após a chegada de Hitler ao poder, decidiu entrevistar e colecionar os sonhos de cidadãos comuns da Alemanha, pertencentes aos mais variados ofícios, idades, gêneros e raças, posicionados entre os tipos que estavam sendo ou poderiam vir a ser atacados, discriminados e violentados pelo sistema político. Na triagem, descartou os que lhe pareceram mais voltados à individualidade e à história de vida, os mais genéricos, assim como, provavelmente, os confusos e fragmentários, e sublinhou os que discorriam sobre a realidade política. Não fica claro se os últimos seriam os mais prevalentes, mas resta incontroverso que seriam compartilhados e nada raros. Constatou o mesmo que Tillich: antes que o mal se tornasse banal aos olhos dos despertos, os sonhadores já o previam.
Publicados em 1965, quando, segundo Beradt, “já eram desprovidos de atualidade”, representam, nas suas palavras, “uma pequena contribuição para a história do totalitarismo.” Dado o já escrito sobre o nazismo, era difícil imaginar uma obra que conferisse um relevo singular ou um ângulo de análise inusitado. Foi essa a proeza do livro de Charlotte Beradt, Sonhos no Terceiro Reich, lançado no Brasil em 2022, pela editora Fósforo. Trata-se de um título com condições de participar de qualquer seleção qualificada de publicações sobre o assunto. E de contribuir, em um segundo plano, mas não menos importante, com a teoria e a interpretação dos sonhos.
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Seria impossível reproduzir neste espaço o conjunto do material coletado por Charlotte Beradt. Mas duas séries se destacam na compreensão do clima político da época. Abordam a expectativa de ser invadido na privacidade e na intimidade e a necessidade de entregar os pontos e se render. Compõem as tramas centrais da complexa tapeçaria montada pela autora. Peço a atenção e a paciência do leitor para um mergulho nesse universo. Vou apresentar os sonhos acompanhados de seus autores, mas como se fossem produtos de um psiquismo coletivo.
Um primeiro sonho é o da casa sem paredes. O ano é 1934 e quem o vivencia é um médico de 45 anos.
“Perto das nove da noite, depois de minhas consultas, quando quero me esticar calmamente no sofá com um livro sobre Matthias Grünewald, minha sala e meu apartamento ficam de repente sem paredes. Olho apavorado ao meu redor e, até onde meus olhos conseguem alcançar, os apartamentos estão todos sem paredes. Ouço gritarem em um megafone: ‘De acordo com o edital sobre a eliminação de paredes, datado do dia 17 deste mês...’.”
O sonho é movido por um credo. Em um regime totalitário, necessário se faz abolir a privacidade e desnudar qualquer segredo. Nada pode escapar ao regime. Tal como a Stasi, a Gestapo ficará sabendo, mais cedo ou mais tarde, da vida de todos. Para simbolizar esse propósito iliberal, uma arquitetura sem paredes. É essa a expectativa ansiosa transmitida no sonho.
Tudo o que for dito, mesmo em ambientes privados, será conhecido. Partindo do temor de ser desnudada, uma série de sonhos tematiza a intromissão do Estado no espaço da individualidade e, consequentemente, a perda de si. O perigo se instala dentro de casa. É possível estar sendo vigiado pelo serviço de controle de telefonemas e por escutas instaladas na lareira da casa, nas almofadas do sofá, nas paredes. Frente a esses espiões da intimidade, uma simples frase declaratória dita ao telefone – “não encontro alegria em mais nada” – representa um crime. Foi o que pressagiou o sonho de um funcionário público que teve a sua expressão de insatisfação, dita em tom de desabafo para o irmão, devidamente capturada pelo serviço de vigilância telefônica e transformada em prova de ilícito.
“Como toda noite, às oito horas converso ao telefone com meu irmão, meu único confidente e amigo. Depois de, por precaução, elogiar a atuação de Hitler e a qualidade de vida do povo no país, afirmo: ‘Não encontro alegria em mais nada’. O telefone toca no meio da madrugada. Uma voz inexpressiva diz: ‘Aqui é o Serviço de Controle de Telefonemas’ – e nada mais. Percebo imediatamente que o meu crime foi a tal falta de alegria, ouço-me dando justificativas, pedindo e implorando que me perdoem daquela vez, que não me denunciem, não passem a informação adiante e não me culpem de nada.(...) A voz permanece absolutamente muda e desliga, deixando-me em uma incerteza torturante.”
Não só o que é falado ao telefone ou no ambiente da casa, mas também os afetos sentidos e expressos, todos se sujeitam à censura e ao controle do Estado. A felicidade e a tristeza deixam de ser eventos individuais e privados, para gozo ou infortúnio de cada um. De agora em diante fazem parte dos deveres e obrigações do cidadão se regozijar com o que é um bem e repudiar o que é um mal da exclusiva perspectiva do Estado.
Um terceiro sonho apresenta a perseguição política de forma ainda mais implacável. Se era arriscado falar ao telefone ou dentro de casa, agora é perigoso pensar. Formulado no ano de 1933 por uma mulher com cerca de 30 anos, sem profissão, profetiza que os aparelhos de investigação do Estado descobrem o que lhe veio à cabeça ao ouvir a palavra diabo.
“Estou sentada, muito bem-arrumada e penteada, trajando um vestido novo, no camarote da ópera (...) e desfruto dos olhares de admiração. Apresentam ali minha ópera favorita, A flauta mágica. Depois do trecho “Das ist der Teufel sicherlich (É com certeza o diabo), um esquadrão da polícia entra marchando com passos fortes, diretamente em minha direção. Com a ajuda de uma máquina, eles constataram que, ao ouvir a palavra ‘diabo’, eu pensara em Hitler. Vejo-me suplicando por ajuda em meio a todas as pessoas vestidas solenemente. Mudas e inexpressivas, elas se olham; mas nenhum rosto mostra compaixão. Ainda que o velho senhor no camarote vizinho pareça, sim, distinto e bondoso, quando tento olhar para ele, ele cospe em mim.”
Na fantasia antecipatória do sonho, as fronteiras que separam o eu exterior voltado pro mundo do eu interior voltado para si são violadas. Não é possível sequer pensar sem ser fiscalizado. Uma associação mental que ocorra espontaneamente será detectada, proibida e condenada! Sem perdão, nem qualquer vestígio de humanidade.
A próxima carta desse tenebroso baralho onírico vai inviabilizar o próprio ato de sonhar. Se, pensando em vigília, posso me expor ao equipamento de captura de associações mentais, sonhando, estou igualmente ou ainda mais vulnerável. Em tempos de paz, há quem receie falar dormindo e ser ouvido por quem está do lado. Imagine em tempos agudamente persecutórios!
“Sonho que sonho apenas com retângulos, triângulos e octógonos, que de algum modo parecem biscoitos de Natal, pois é proibido sonhar.”
Na tentativa de blindagem, uma das últimas estratégias é a do sonho ininteligível. Não posso falar, não posso pensar, não posso sonhar; e caso sonhe, que seja incompreensível. O exemplo que segue ocorreu no verão de 1933 no espírito de uma mulher que trabalhava como faxineira:
“Sonho que, por precaução, falo russo enquanto durmo (não sei falar russo e também não falo durante o sono), para que eu mesma não me compreenda e, assim, ninguém me entenderá caso eu diga algo sobre o Estado, pois isso é proibido e precisa ser denunciado.”
E não haverá ninguém com quem contar. Um dano indireto e significativo à privacidade e à individualidade é previsto no sonho da associação Hitler-Diabo. A encenação da abordagem policial se desdobra sem que alguém mova uma palha para prestar socorro. Só há “vazio”, “gente muda e inexpressiva”, “rostos impassíveis”. Um público intimidado que ora faz de conta que nada está acontecendo, ora tripudia diante do sofrimento da protagonista. Os sentimentos de solidão e abandono são marcas fortes do espaço público em regimes totalitários, e de custo incalculável.
Conforme nos recorda o químico e escritor Primo Levi, “uma parte de nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem.” Sem o outro ao lado, sem redes de solidariedade, ficamos desprovidos da possibilidade de desenvolver, paradoxalmente, o sentimento produtivo de estar só, condição essencial para o exercício do eu. No lugar de um eu voltado para si há um eu em estado de alerta. O passo seguinte é a adesão ao sistema. Nas palavras de Beradt: “A pessoa é isolada e, para não desmoronar, subjuga-se à pressão da conformidade, que lhe permite sobreviver às custas de sua liberdade interior.”
Em um último sonho dessa série, o das placas de sinalização pública, a perda dos direitos à individualidade e à idealidade é consolidada pela proibição categórica das palavras Deus e Eu, dentre outras. A mesma jovem da associação Hitler-Diabo foi quem o elaborou.
“Quadros são colocados em cada esquina para substituir as placas de rua, proibidas. Esses quadros anunciam, em letras brancas sobre um fundo negro, vinte palavras que o povo está proibido de pronunciar. A primeira palavra é Lord – por precaução, devo ter sonhado em inglês, e não em alemão. As outras esqueci ou provavelmente nem cheguei a sonhar com elas, com exceção da última: Eu.”
A perspectiva do sonho é didática: com o Führer acima de tudo, fica proibida a palavra Deus; com o Führer como modelo, elimina-se o pronome eu. Não é admissível outro ideal de aperfeiçoamento ético que não o que se deduz do próprio Führer; não é permitida a propensão à individualidade embutida na palavra eu. Na ideação ansiosa de ficar sem Deus, sem Eu e sem placas de orientação, o horizonte é a desidealização, a despersonalização e o desnorteamento.
Quando afirmou ingenuamente, ou talvez cinicamente, que: “A única pessoa que tem vida privada na Alemanha é aquela que dorme”, o chefe da organização do Partido Nazista, Robert Ley subestimou o poder da propaganda, da ameaça constante e da desumanização do inimigo. A ideia seria defendida com intenção libertária em O menino grapiúna, de Jorge Amado: “Não possuímos direito maior e mais inalienável do que o direito ao sonho. O único que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar.”
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Infelizmente, os sonhos de Beradt mostram que isso não é verdade. O sistema político totalitário invade todos os poros e anseia por ser visto como onisciente e onipotente, inclusive em sonhos. E os sonhadores colaboram com essa orquestração ao imaginarem um poder absoluto. Conforme Beradt, transmitem a crença orwelliana de que “é impossível saber se estamos sendo vigiados o tempo todo”. Formulam, objetivamente e sem que se deem conta, sonhos de realização do desejo do sistema.
O repertório do terror e da perseguição segue em marcha firme e vai produzir os sonhos de rendição. Tematizam: a) a tentativa de conciliar o inconciliável, b) a inutilidade do ato de adesão, c) a consideração da crítica ao sistema como contrapropaganda e d) a busca pela assimilação ao grupo opressor. Respondem em conjunto a um sentimento típico, presente em vários sonhos e em conversas cotidianas da época: o de que “não adianta, não dá para fazer nada.” No estado de desamparo, um dos fortes desejos humanos é o de desistir e de ser incluído, custe o que custar.
Em um exemplo do primeiro tipo de sonho de rendição, a ambivalência é expressa em forma de gozo e culpa. O sonho de um médico oftalmologista de 45 anos ilustra o conflito e a inclinação conformista.
“A SS instala arames farpados nas janelas dos hospitais. Jurei para mim mesmo que não admitiria isso em minha seção, caso chegassem com seu arame farpado. Mas acabo permitindo que o façam e fico ali, a caricatura de um médico, enquanto eles quebram os vidros e transformam o quarto de hospital em campo de concentração com arames farpados. Mesmo assim, sou demitido. Porém, sou chamado de volta para cuidar de Hitler, pois sou o único no mundo que pode fazê-lo: fico tão envergonhado de meu orgulho, que começo a chorar.”
É evidente o prazer sentido pelo protagonista devido ao lugar de importância conquistado junto a Hitler. Mas é igualmente evidente a vergonha e a culpa por trair os próprios princípios. Em tons mais dramáticos, o mesmo tipo de sonho aparece na experiência de uma secretária de 30 anos, filha de pai cristão e mãe judia, após o decreto da Leis Raciais (a Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemãs, 1936-1937), que proibia o casamento entre duas raças e as relações sexuais entre judeus e pessoas de sangue ou parentesco alemão. O decreto a tornou oficialmente mestiça e lhe despertou sentimentos ambíguos em relação à mãe que lhe era querida e a quem nunca pensara em abandonar.
“Preciso fugir com minha mãe. Corremos como loucas. Ela não aguenta mais. Coloco-a sobre as minhas costas e continuo a correr. O peso dela me faz sofrer de uma maneira indescritível. Depois de muito tempo, percebo que estou me martirizando com uma morta. Um sentimento horrível de alívio toma conta de mim.”
Não se trata, por certo, de sentimentos de ódio edipianos que pegaram carona na corrente aberta pelas leis raciais, como argumentou acertadamente Charlotte Beradt. Não como causa central. Trata-se, muito mais, da “intromissão do público no âmbito privado” cujas “pressões vindas do alto tornam difícil amar seu próximo, até mesmo os familiares, e viver junto a ele.”
Me alegro, me orgulho, me alivio, montam a trilogia do capital afetivo que suborna a autonomia e autenticidade do indivíduo.
Um segundo tipo de sonho de capitulação é o do empresário Senhor S. Nele, está pressentido o maior dos temores: de que a última estratégia de sobrevivência, a capitulação, seja ainda assim fracassada. No nazismo, não há espaço para recolhimento e protesto, tampouco para adesão.
“Goebbels chega à minha fábrica. Manda os funcionários se alinharem em duas filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer a saudação a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o braço apenas alguns milímetros. Goebbels observa o meu esforço como se assistisse a um espetáculo, sem expressar nem aprovação nem desagrado. Quando finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis palavras: ‘Eu não desejo a sua saudação’. Daí vira-se e vai na direção da porta de saída. Eu fico exposto daquela maneira em minha própria fábrica, entre meus próprios trabalhadores, com o braço levantado. Fisicamente, só posso ficar assim. Então fixo o olhar no pé torto de Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E permaneço nessa mesma posição até acordar.”
O que é pressentido é a representação fiel de um dos resultados mais cruéis do nazismo. O perseguido não será reconhecido como um igual ou um desejável, por mais esforços que faça. O Senhor S. é um destes, mas prefere não saber disso. Embora ambivalente em seus afetos, haja visto o olhar fixo no “pé torto de Goebbels”, exibe uma aguda aspiração à submissão com vistas a um estado de paz, apesar dos dissabores. Mas é o exato oposto o resultado alcançado. Após o gesto malsucedido de entrega, se encontra, nas palavras de Beradt, “moralmente despedaçado”. Descobrirá com o tempo que o único caminho é a apatia. Como profetizou o poeta Ovídio (séc. I d.C.): “A única salvação dos vencidos é não esperar nenhuma!”
Um terceiro sonho de rendição dá um passo adiante no processo de ser assimilado e visualiza cores no que era descrito até então em tons de cinza chumbo. Algo semelhante ao filme A vida é bela, com o pai e o filho acreditando na farsa. O mesmo médico oftalmologista é quem sonha o seguinte:
“Estou em um campo de concentração, mas todos os prisioneiros passam muito bem, participando de jantares e assistindo a peças teatrais. Penso que é muito exagerado o que se ouve sobre os campos e então me olho no espelho: uso o uniforme de um médico de campo de concentração e botas altas especiais, que cintilam de tão brilhantes. Encosto-me no arame farpado e começo a chorar de novo.”
Ainda há um conflito, mas já foi cruzada a linha vermelha da dignidade e só resta agora um choro de autopiedade, um desmentido, como uma espécie de pedágio emocional pronto para endossar o desejo de assujeitar-se. Aos poucos, como bem argumentou Beradt, a covardia vai soar como bom senso, “a liberdade como peso, a servidão como alívio.” Elaboram-se motivos para trocar a resistência custosa pela adesão gratificante. Pensando bem, não é tão mal assim! Se coloco na balança, estou perdendo mais do que ganhando perseverando nessa atitude obstinada.
O sonho de um homem de aproximadamente 30 anos é a perfeita narrativa da transição gradual e condescendente na direção de um alinhamento ao totalitarismo.
“Aos domingos, preciso ir à estação (de metrô) Zoológico coletar doações para os nazistas. Penso comigo: ‘Ah, quero passar o dia tranquilo, então, em vez da caixa de coleta, vou levar uma manta e um travesseiro, para ficar sem fazer nada’. Uma hora depois, entretanto, aparece Hitler. Ele usa botas de cano alto envernizadas e brilhantes, como as de um domador, mas também calças de cetim lilás amassadas e cintilantes, como as de um palhaço de circo. Hitler dirige-se a um grupo de crianças e, fazendo gestos artificiais e exagerados, inclina-se para elas (...) Debaixo do cobertor, sinto-me incomodado e tenho medo; ele vai se aproximar de mim, vai me tomar por um representante do grupo de pessoas que fingem dormir e vai perceber que eu não trouxe nenhuma caixa de coleta. Imagino momentaneamente que resposta heroica devo ter à mão, algo como: ‘Sou obrigado a estar aqui, mas sei dos campos de concentração e sou contra eles’. Hitler continua a dar sua volta. Ora essa, as outras pessoas não têm medo algum – uma delas até mantém seu cigarro na boca enquanto conversa com ele, e muitos dão risadas! (...) Olho em volta, perguntando-me onde está sua famosa guarda de proteção, mas vejo que Hitler trouxe apenas um motorista à paisana. Ele se dirige à chapelaria, como todos os demais, espera pacientemente até chegar a sua vez e recebe seu casaco... Talvez ele não seja assim tão ruim... Talvez seja em vão o meu esforço de ser contra ele. De repente percebo que, em vez do travesseiro e da manta, o que tenho nas mãos é uma caixa de coleta.”
Um típico sonho de negação. Na metáfora de preparar-se para dormir, poderia ter dito em sonho o mesmo que um outro homem: “Digo, no sonho, a seguinte frase: ‘Não preciso mais dizer sempre não’”. Sabemos, assim como Beradt, “quanto esforço se faz para ser ‘contra’”. Deve ter sido por demais tentador passar de opositor para seguidor “quando o caminho da resistência se tornou pedregoso demais.”
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Sem as idas e vindas dos percursos anteriores, e sem a complexidade de uma transição lenta, o próximo degrau são os sonhos de reconhecimento e de pertencimento ao grupo opressor. Ser amigo de Hitler, o seu braço direito!
“Marcho em uma coluna da AS, mas estou à paisana. Eles querem me espancar, mas então chega Hitler e diz: ‘Deixem-no, pois queremos tê-lo conosco.’”
O sonho não nega a diferença – estar à paisana – e tampouco o risco – de ser espancado –, e se mostra claramente impulsionado pelo desejo infantil e delirante de ser salvo pelo principal inimigo. Mostra-se ingênuo na mesma proporção da grandeza do perigo que aparece no horizonte: o banimento, os guetos e os campos de concentração. A solução final era ainda impensável naquele instante, e quase inacreditável em qualquer tempo. É sobre esse exílio que sonha uma dona de casa de 35 anos, no ano de 1935.
“Durante um passeio, ouvimos um boato na rua de que não devemos ficar em nossas próprias casas, pois alguma coisa acontecerá. Vamos para o outro lado da rua e olhamos, melancólicos, para o apartamento no alto: as persianas estão abaixadas e ele parece desabitado. Vamos para a casa de minha sogra, agora nosso último refúgio. Subimos a escada, mas lá moram pessoas totalmente diferentes. Será que erramos de prédio? Subimos a escada do prédio vizinho, mas também não é ali, pois se trata de um hotel. Saímos por outra porta tentando nos orientar, mas agora não encontramos nem sequer a rua. De repente, acreditamos ter encontrado a casa de que tanto precisávamos, mas é de novo o mesmo hotel com o qual nos equivocamos. Quando esse vaguear enervante se repete pela terceira vez, a proprietária do hotel diz: ‘Mesmo se os senhores encontrarem o apartamento, não adiantará nada. O que acontecerá é o seguinte...’ – e se põe a declamar, de tal maneira e com tais gestos, como se lançasse uma maldição como a que recaiu sobre Ahasverus: ‘É uma lei: Não deverás morar em lugar algum, mas andar assim pelas ruas. Essa deverá ser tua vida’. Em seguida, ela retorna à prosa e fala monotonamente, como se estivesse lendo uma ata: ‘Em concomitância com a lei acima mencionada, tudo o que até agora era permitido passa a ser proibido, tal como entrar em lojas, empregar operários...’ No meio desse horror, lembro-me de um detalhe: onde mandarei agora confeccionar meus casacos? Deixamos o hotel e andamos pra sempre pela chuva sombria...”
Embora antecipatórios, nem em sonhos seria possível imaginar a extensão desse calvário. Apenas analogias persistiram. Elie Wiesel, deportado em 1944 com sua família para os campos de concentração, afirmou em seu livro A noite:
“Num último momento de lucidez, pareceu-me que éramos almas malditas errando no mundo-do-nada, almas condenadas a errar através dos espaços até o fim das gerações, em busca de sua redenção, à procura do esquecimento – sem esperança de encontrá-lo.”
Os sonhos-testemunhos, assim o chamaremos a partir de então, revelam, conforme Beradt, a forma como o psiquismo, antecipando-se ao pensamento, reagiu ao terror e o elaborou de uma “forma altamente articulada, num vaivém entre tragédia e farsa, entre realismo e surrealismo.” Produzidos em um contexto em que a perseguição e a ameaça foram aos poucos ganhando corpo, os sonhos expuseram a nu “a estrutura de uma realidade prestes a se tornar um pesadelo.” Apresentaram o que à época ainda era “empiricamente improvável”, mas “que, mais tarde, na catástrofe do declínio, se tornou real.” Nesse sentido, os sonhos portavam, para Beradt, um “valor de prognóstico”. Vale salientar: foram antecipatórios e não premonitórios; não adivinharam, prescrutaram futuros.
Recolhendo as marcas impressas em territórios profundos das almas dos indesejados, dos perseguidos e dos opositores, Beradt estruturou uma cartografia da “fabricação do homem totalmente assujeitado”, de uma “não pessoa”.
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A denúncia veiculada pelos sonhos-testemunhos, em um momento em que projetos políticos de extrema-direita voltam a nos perseguir e emparedar, aqui e em parte significativa do mundo, é um ato singular e pleno de atualidade, que aterroriza e desampara, desperta impotência e alerta.
Por coincidência, fiz do livro de Beradt uma companhia diária na travessia dos dias que antecederam e sucederam o segundo turno das eleições brasileiras. Para além do interesse humano e intelectual, a experiência me despertou sentimentos incômodos. De uma angústia onerosa e paralisante, associada a um possível resultado negativo que sequestraria os meus mais preciosos ideais, assim como aconteceu com os personagens do livro, a uma alegria triunfante, seguida de um respiro aliviado que, se não dissolvia o terror, o afastava o suficiente para garantir uma vez mais a consciência de potência. No entanto, surgia logo em seguida um novo dissabor: aquele entusiasmo reconfortante trazia junto consigo uma vontade de não ver mais.
De repente, as consequências daquela violência descrita no livro não eram mais minhas. A identificação experimentada em um primeiro momento dava lugar a uma revolta e a uma piedade distanciadas e culpadas. Uma alegria mesclada à vergonha me fazia pensar não estar mais entre as vítimas potenciais ou, pelo menos, não mais agora. Passara do “é preciso fazermos algo urgentemente” para “basta (vocês) quererem ou fazerem por onde. Contem com a minha solidariedade!” Um claro ensaio defensivo de retomada do interesse pelos meus botões estava posto em curso.
Vimos nos sonhos-testemunhos como isso acontece às avessas, e à força. Nunca fez tanto sentido a noção de lugar de fala. Só quem sofre se envolve. E olhe lá! Apreço genuíno pela coletividade é uma dimensão recalcada na sociedade contemporânea, salvo exceções honrosas. Ubuntu – “eu sou porque nós somos” – só na língua zulu. Na comunicação meritocrática ocidental, mãe de uma parcela dos quadros ansiosos e depressivos atuais (como defendi em um ensaio escrito para a Continente em janeiro de 2022), o lema é outro: eu sou (ou devo ser) o que ninguém foi ou conseguiu ser, sem contar com qualquer ajuda para tanto. Daí decorrem os jargões: questões sociais não são problemas meus e não me importo com o que pensam de mim.
Em um cartum do argentino Joaquín Salvador Lavado, o Quino, Susanita se mostra incomodada com as preocupações de Mafalda com a exploração do trabalho infantil no mundo. E, enquanto a amiga se choca com a denúncia do jornal de que são 43 milhões de crianças em condições de trabalho precárias, ela a questiona sem maiores envolvimentos: “E daí? A culpa é nossa? Não. Podemos solucionar o problema? Não. A única coisa que podemos fazer é ficar indignados e dizer ‘que absurdo’. Pronto! Diga você também ‘que absurdo’. Assim a gente se despreocupa e pode ir brincar em paz.” A tentação de enunciarmos o nosso Que absurdo e voltarmos a tocar a vida em paz é imensa.
É particularmente difícil nos mantermos em alerta por um tempo estendido contra o que soa como um ataque ao pensamento, ao bom senso e à humanidade. Quando o adversário se dedica a depredar e sequestrar a dignidade, felicidade e vontade de viver, o desejo mais genuíno é de abotoar-se. A inclinação espontânea é para cancelar os contatos indesejados, evitar os diálogos tensos e o noticiário absurdo dos cercadinhos. Não por acaso, Bertolt Brecht hierarquiza os elogios conforme as doses de dedicação à política: imprescindíveis, só os que lutam por toda a vida.
No Brasil atual, enquanto não se renovam as instituições políticas e se recostura o tecido social, a nossa desejável apatia (uma espécie de belle indifference histérica), acompanhada da redentora interjeição de Susanita, nos faz conviver com uma alta probabilidade de sermos novamente surpreendidos por um novo representante do totalitarismo – lobo disfarçado com vestes de pastor, de político extremista, de falso messias e de cidadão de bem. Mais um cenário presente nos sonhos de Beradt.
“Um funcionário de banco de cerca de quarenta anos, demitido por ser judeu, sonhou em 1936, em Berlim, que havia emigrado, que estava bem no novo país e que, trabalhando novamente em um banco, fazia progressos – tanto assim que pôde financiar suas primeiras férias nas montanhas: Faço uma escalada com um guia. Então algo acontece no pico mais alto. O guia tira a capa e o capuz e coloca-se diante de mim, totalmente vestido com um uniforme da SA.”
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Com o que sonhamos durante esses últimos quatro anos? Com que frequência tivemos noites insones? E com o que sonharíamos se a escalada da política do ódio, da estupidez e do obscurantismo tivesse encontrado aval nas últimas eleições? Provavelmente, com o que sonham, há séculos, as populações vulneráveis de nosso país, excluídas das garantias mínimas do pacto civilizatório – os negros, os pobres, as mulheres, em especial, as negras e periféricas, os indígenas, os transgêneros, as lésbicas e os gays. E com uma tendência a piora em escala geométrica.
Nós, brasileiros, sabemos o que é conviver com a atuação livre e desimpedida de extremistas de direita, cuja vocação é acusar o outro do que são e envenenar com pregações que misturam ódio, negacionismo, fanatismo religioso e preconceito as conversas, os debates, as interações pessoais e os lugares de trabalho e de convívio.
Sabemos da irresponsabilidade com que trataram a vida e a verdade científica. Do gozo que sentiram com a desqualificação dos diferentes. Do cinismo e desrespeito pela política e as instituições. Do escárnio que demonstraram com o que sustenta a existência humana – a confiança no próximo, a educação e o meio ambiente. E de seus novos escudeiros fiéis: os evangélicos e católicos pregadores da morte – os mais chocantes dos personagens. Concorrem apenas com os sonâmbulos políticos que parasitaram na frente dos quartéis, se é que não são os mesmos, retratados na série documental extremistas.br, da Globoplay.
Em doses proporcionais ao tempo de exposição e à intensidade dos ataques em solo nacional, durante as eleições, cultivamos uma paleta diversificada de medos. Sentimos receio de vestir as camisas de nossos candidatos, de usar os seus broches e adesivos nas roupas, nas bicicletas, nas motos, nos carros, por conta de ameaças de depredação e de violência física. Não escrevemos nas redes sociais e nem entramos em discussões o quanto queríamos, ou seria necessário, por razões similares.
Exemplos dos “pequenos pecados de omissão” praticados por conta de um estranho sentimento derivado do amedrontamento, a “culpa dos inocentes”. Agimos nos omitindo porque, do contrário, nos sentiríamos vulneráveis, como se estivéssemos fazendo algo errado. Somos mais temerários do que ousados, quando não contamos com o anteparo institucional de nosso lado. Situação que, segundo Beradt, “gradualmente resulta no processo de contração da vontade até, por fim, sua atrofia total.”
No prédio onde moro só viemos a descobrir a existência de iguais após as eleições. Festejamos a diplomação em conjunto e em um ambiente privado como se estivéssemos incomodando. E com o fantasma do aniversariante assassinado nas cabeças. Nem pensar em comemorações em público. E seguimos sentindo angústia ao assistirmos à posse presidencial com o constante pressentimento de um fenômeno Kennedy à brasileira. Acompanhamos tementes e revoltados o quebra-quebra dos vândalos e terroristas de Brasília, no 8 de janeiro. E tomamos consciência, com indignação, desencanto e compaixão, do genocídio dos ianomâmis. Cenas que nos proporcionaram um claro prenúncio do que estaria por vir, caso não tivéssemos interrompido a descida ao inferno. Entre a pantomima do L e do sinal de arminha não havia apenas uma diferença de inclinação posicional, mas um abismo angular.
Sem condutas precavidas e vigilantes, correremos o irônico risco de sermos derrotados democraticamente por neonazistas. Goebbels, em 1935 afirmou: “Sempre declaramos que nos serviríamos dos meios democráticos para conquistar o poder e que, uma vez no poder, negaríamos aos nossos inimigos todas as possibilidades que nos foram concedidas enquanto éramos oposição.”
De que tipos de atitudes e de quais formas de cuidado necessitamos para evitar esse destino? Essa é uma pergunta ampla para ser respondida por muitos atores sociais. Sem dúvida, do jornalismo responsável, pertinente e inspirador de Charlotte Beradt e de tantos que fazem o mesmo. Do combate assíduo e firme à mentira e à difamação, vestidas cinicamente com o manto da liberdade de expressão. De trabalhos voluntários, de responsabilidade social e da organização da sociedade civil.
Venceu temporariamente o desejo de cuidar e transformar ante a compulsão a destruir e a odiar. E é imprescindível evitarmos uma repetição da idiotia reinante nos últimos quatro anos. Ficou claro que só por meio da política podemos continuar a desfrutar de verbos como dialogar, duvidar, discordar, dormir em paz, sonhar consigo e votar! E ficou ainda mais evidente o quanto somos vulneráveis. Realidades invasivas e abusivas retiram rapidamente o nosso fôlego, assim como a nossa autonomia e liberdade. É importante lembrarmos disso para agirmos enquanto é tempo. O alerta é da própria Beradt.
“Essa é a lição de todas as fábulas políticas sonhadas no Terceiro Reich, que – como todas as fábulas – contêm não apenas explicações, mas também alertas: de que as manifestações do totalitarismo precisam ser reconhecidas – antes que as capas e os capuzes sejam removidos, como no sonho do guia de montanhas; antes que nos impeçam de dizer ‘eu’ e nos obriguem a falar de tal maneira que não entendamos a nós próprios; antes que a ‘vida sem parede’ tenha início.”
Precisamos de alertas, mas também de sonhos edificantes, de encontrarmos as formas mais criativas e eficazes de utilizarmos o nosso melhor em interações com o Brasil profundo. É para o que nos exorta a inspiradora Carta do Instituto Augusto Boal. Precisamos fortalecer o sentido do comum entre nós – um só país, um só povo. Para isso, economia e políticas sociais precisam andar juntas. E como “a luta e a festa são irmãs”, conforme nos ensinou o historiador Luiz Antonio Simas, precisamos de um sonho próprio, de um sonho carnavalizado, como forma de pressagiar um novo Brasil.
“Quando eu falo que o carnaval inventou o Brasil possível, é porque, para mim, o Brasil possível é o Brasil da diversidade, é o Brasil da solidariedade, é o Brasil da construção da sociabilidade, é o Brasil que contesta um modelo hétero-patriarcal, normativo, branco. E esse Brasil diverso, transgressor, inventor, contestador e plural é o Brasil que se manifesta no carnaval. Por isso é que eu digo que o Brasil possível é aquele que o carnaval colocou para nós. Nós não inventamos o carnaval, mas de certa maneira, o carnaval inventou esse Brasil possível, esse Brasil que almejamos dentro de uma perspectiva profundamente democrática”.
E, sob a guarda desses indispensáveis sonhos comunitários e libertários, há uma lição difícil e urgente a ser aprendida: o cultivo da democracia nos intervalos entre a luta e a festa, no extenso cotidiano dos dias comuns, território da política propriamente dita. Deixo as recomendações sobre como fazer para os práticos e os pesquisadores do assunto. Me atenho, como psicanalista e professor, a afirmar que fenômenos psicológicos produzidos na interface do indivíduo com Estados opressivos, excludentes e violentos nos interessam. Um compromisso cada vez melhor recepcionado por uma fração dos pares, associações e institutos, atentos às reivindicações da literatura decolonial, e aliados de primeira hora da frente ampla em defesa da democracia.