We are the world: fome de empatia
Documentário 'A noite que mudou o pop' mostra os bastidores da gravação de um dos singles mais vendidos dos anos 1980
TEXTO Débora Nascimento
01 de Fevereiro de 2024
A gravação do single reuniu 45 artistas
Foto Reprodução
Em dezembro de 1984, a música Do they know it's Christmas? chegou ao mercado fonográfico mundial. O objetivo do lançamento era arrecadar fundos para aplacar a fome na Etiópia. Idealizada pelo cantor e ativista irlandês Bob Geldof, coautor (com Midge Ure) deste single, a iniciativa inspirou outro cantor e ativista, o norte-americano Harry Belafonte, a querer fazer o mesmo nos EUA. Em suas palavras, os artistas negros norte-americanos não poderiam ficar apenas vendo brancos britânicos tentando ajudar pessoas negras no continente africano – altruísmo que chega a ter sua dose de ironia histórica.
Com essa intenção em mente, Belafonte contactou Ken Kragen, gerente musical, produtor de TV e empresário de Lionel Richie. Munido de senso de oportunidade, Kragen sugeriu que seu cliente compusesse um single, cujo lucro da venda fosse revertido para combater a fome na Etiópia. Lionel, que estava no topo do estrelato com canções como All night long e Hello, convidou Stevie Wonder, antigo companheiro da gravadora Motown, para ser seu parceiro nessa empreitada. Mas este gênio da música não é o tipo de pessoa que dá respostas imediatas.
Com a demora do colega, Lionel convidou, então, o maior astro pop do mundo, outro antigo companheiro da Motown, Michael Jackson. E assim nasceu uma das músicas icônicas dos anos 1980, We are the world – que se tornou hit mundial. Os bastidores da gravação dessa composição são o foco do documentário de Bao Nguyen, The greatest night in pop, que, na tradução para o português, virou A noite que mudou o pop.
Para quem viveu ou não os anos 1980, o documentário, que fez sua estreia na segunda-feira (20), na Netflix, é um deleite, pois narra a sequência de acontecimentos e os detalhes da produção, tendo como ponto principal a dinâmica da gravação conduzida por Quincy Jones – na época, o mais renomado produtor musical do mercado fonográfico, que havia deixado sua assinatura no álbum mais aclamado da década, Thriller.
Assim como a produção de Bob Geldof tinha convidado alguns do artistas que estavam nas paradas de sucesso no Reino Unido, como Sting, George Michael, Duran Duran, Boy George e Bono Vox, a iniciativa norte-americana USA for Africa (United Support of Artists) recrutou outros nomes que também estavam no topo do pop, como Bruce Springsteen, Cyndi Lauper, Hall & Oates, e emblemas como Ray Charles, Diana Ross, Tina Turner, Dionne Warwick, Stevie Wonder e Bob Dylan, visivelmente deslocado do clima de confraternização na gravação. Ao todo, eram 45 artistas.
O single foi gravado na noite de 28 de janeiro de 1985. A data foi escolhida a partir do dia da realização do American Music Awards, que concentraria a presença da maior parte dos artistas convidados. Sabendo que eles estariam no mesmo lugar e ao mesmo tempo, a produção do USA for Africa não gastaria um dólar com passagens aéreas e hospedagem. E havia outro detalhe: o evento seria apresentado por Lionel Ritchie, o que reforçaria o convite. Mesmo empolgado com os prêmios que estava recebendo na cerimônia, um total de seis, o ex-vocalista do Commodores tentava também conter sua ansiedade com a gravação que viria a seguir no A&M Recording Studios, também em Los Angeles.
Uma das preocupações de Lionel e dos produtores era com o sigilo da gravação. Sem nem sonhar com a existência de redes sociais na época, seria mais fácil manter a gravação longe dos holofotes da imprensa. Caso contrário, a divulgação iria atrair uma multidão de fãs em frente ao estúdio, o que poderia afastar artistas mais reclusos, como Bob Dylan, considerado a figura-chave da iniciativa. Seu nome foi usado até como trunfo incontestável para convencer outros artistas a aderirem à ação.
A produção também usou outro estratagema. No próprio American Music Awards, Lionel Ritchie convidou Sheila-E, baterista de Prince, como uma isca para que o cantor de Purple Rain, que já havia negado a participação na gravação de We are the world, reconsiderasse a proposta. Rival de Michael Jackson, Prince manteve a negativa, mas sugeriu um solo de guitarra em uma gravação isolada do restante. Isso contrariava a socialização da iniciativa e a ideia de arranjo de Quincy Jones. Prince acabou participando do projeto com 4 the tears in your eyes, uma das 10 faixas do álbum We are the world.
Durante a gravação do single, foram registradas as imagens que serviriam para a criação do videoclipe We are the world, que já apresentava uma atmosfera de documentário. E quase 40 anos depois, esses registros imagéticos se transformaram, enfim, em um documentário de fato. O que vimos em 1984, na realidade, era o material aproveitado nos takes de gravação do áudio que deram certo – como aqueles trechos em que quatro, três ou dois artistas cantaram juntos ou nos solos de voz, como nos de Bruce Springsteen e Bob Dylan.
Essa parte da música que cabia a Dylan, a propósito, tem uma curiosidade. Sem saber como colocar sua voz na gravação, o artista acabou recebendo uma inesperada ajuda de uma voz-guia. Mestre em imitar várias vozes, Stevie Wonder foi ao piano e cantou o trecho como Dylan deveria cantar, levando em consideração, inclusive, o timbre anasalado: “There's a choice we're making / We're saving our own lives / It's true we'll make a better day, just you and me”. Impossível não rir. Até o sisudo Mr. Zimmerman soltou um sorriso. A linha solo de Dylan é o início do ponto alto da música, que segue com Ray Charles levando ao dueto entre Bruce Springsteen e Stevie Wonder.
Stevie, a propósito, é responsável por vários momentos cômicos do documentário, como, por exemplo, quando chegou atrasado ao dia da gravação que serviria de base para enviar fitas-cassetes aos artistas dias antes da gravação oficial. Stevie achava que ainda iria contribuir com a composição. Michael e Lionel já haviam terminado a canção há dias. E no dia da gravação oficial, enquanto as horas avançavam madrugada adentro, ele atrasou ainda mais o trabalho no estúdio, sugerindo que um trecho da música fosse cantado em suaíli (língua banta da família nigero-congolesa). Em outro momento, ajudou Ray Charles a ir ao banheiro, conduzindo-o como se enxergasse, o que levou todos a rirem com seu humor.
Tendo os depoimentos atuais de Lionel Ritchie como fio condutor, A noite que mudou o pop traz outros momentos curiosos, como o flagrante da surpresa de Madonna ao desconfiar, no tapete vermelho do American Music Awards, que havia algo rolando e que ela não sabia do que se tratava. A cantora foi preterida no lugar de Cyndi Lauper – nunca saberemos como seria o contrário, mas a escolha demonstrou ter sido mais acertada.
No estúdio, havia um visível receio de alguns artistas por terem que cantar diante de outros colegas tão icônicos, especialmente no momento da gravação dos blocos de vozes específicas. Nervoso, Huey Lewis, que ocupou de última hora o lugar de Prince, desafinou em seu primeiro take no grupo que reunia Michael Jackson, Kim Karnes e Cindy Lauper. Aliás, a captação do áudio da então jovem cantora pop foi acompanhada por um estranho ruído, demandando vários takes até que finalmente alguém descobriu a origem do barulho. Vinham dos diversos colares, pulseiras e brincos da artista.
Esses trechos de We are the world que trazem interpretações destacadas, aliás, geraram um grande problema para Quincy Jones resolver: como juntar, de forma harmônica, tantas vozes diferentes? A solução foi encontrada pelo cantor e arranjador Tom Bahler, que atuou quase como um maestro de coral. Bahler disse: “É como fazer um arranjo vocal em um mundo perfeito.” Jones discordou. Para ele, a tarefa seria como “colocar uma melancia em uma garrafa de Coca”. A partir da audição dos discos dos artistas envolvidos, Bahler montou um quebra-cabeça de vozes, organizando-as a partir dos timbres que se combinavam. E o resultado foi surpreendente na época e continua sendo até hoje.
Lançado em 7 de março de 1985, We Are the World vendeu 20 milhões de cópias, tornando-se o nono maior single físico da história, arrecadando mais de US$ 80 milhões (US$ 160 milhões atuais), e ainda ganhou o Grammy de Canção do Ano. A iniciativa, que inspirou outras ao redor do mundo, se transformou em um ponto alto das ações de solidariedade que tiveram início com o Concerto para Bangladesh, organizado por George Harrison, em 1971. O single tornou-se imortal na música pop. O sucesso, por sua vez, inspirou o Live Aid, organizado por Bob Geldof, até hoje o mais grandioso evento musical da história da TV, realizado nos Estados Unidos e Inglaterra, com transmissão ao vivo para o mundo.
Na histórica noite de 28 de janeiro de 1985, Geldof havia sido convidado para proferir um breve discurso antes do início da gravação de We are the world, falando sobre a fome na África. Isso exerceu um efeito no empenho dos artistas para que colocassem sua alma na interpretação e para que cada um “Deixasse o seu ego na porta”, como escreveu Quincy Jones na entrada do estúdio. Hoje, os artistas estão cada vez menos engajados em ações sociais coletivas, mais voltados para seus egos e a léguas de distância de discutir as raízes da fome.
Quando “a noite que mudou o pop” acabou, às 8h do dia 29, Diana Ross foi a última artista a sair do estúdio. Chorou e foi abraçada por Stevie Wonder. A ex-integrante das Supremes gostaria que aquele encontro [de artistas tão talentosos e diferentes] durasse para sempre. De alguma forma mágica que somente a arte consegue, foi exatamente isso o que aconteceu.
Assista ao clipe We are the world.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.