Curtas

Uma guató dona de sua própria história

Autora do projeto 'Vila pequena', a atriz e escritora indígena Gleycielli Nonato se vale da oralidade e de causos do imaginário local para manter, através da escrita, sua cultura viva

TEXTO ERIKA MUNIZ
FOTOS MONICA RAMALHO

30 de Agosto de 2018

A atriz e escritora Gleycielli Nonato, descendente do povo guató, do Pantanal

A atriz e escritora Gleycielli Nonato, descendente do povo guató, do Pantanal

Foto Monica Ramalho/Divulgação

Dizem que na língua guató não se fala “As flores foram trazidas”, mas “alguém trouxe as flores”, pois o foco é na voz ativa dos verbos. Apesar de não ser comprovado, a própria etimologia do nome do povo se aproxima de uma palavra que, em guarani, denota caminhar, ou seja, uma ação. Talvez pelo vezo andarilho que a etnia resguarda. Essa população originária, segundo o Instituto Socioambiental, atualmente se espalha entre o Mato Grosso do Sul, o Mato Grosso e a Bolívia. Na década de 1960, já chegaram a ser considerados extintos, mas anos depois representantes mostraram à Funai que eles resistem.

Os guató são considerados o povo pantaneiro por excelência, devido ao passado de viver pelas ilhas e às margens do Rio Paraguai. Do município de Coxim (MS), cidade localizada mais ao norte do estado sul-mato-grossense, onde o Rio Taquari é meio de vida e de transporte dos habitantes, uma descendente direta dos guató, a atriz e escritora Gleycielli Nonato, se vale da oralidade e de causos do imaginário local para criar e emocionar.

Filha de Agripina Maria de Souza, considerada há 30 anos a primeira-dama do teatro coxinense, Gleycielli teve em casa seu exemplo e contato primordiais com a arte. Apesar do teatro, numa ordem cronológica, ter sido sua primeira forma de pesquisa e expressão artística, já mexia com palavras em cadernos, sempre trazendo muito da perspectiva cultural de seu povo. “Minha família é guató e como a maioria dos guató, eles saíram de suas terras. São conhecidos por serem canoeiros, os ‘verdadeiros donos do Pantanal’. Saíram de suas terras para trabalhar na terra dos outros, dos latifundiários, que invadiram o Pantanal colocando cercas e transformando os indígenas em peões”, explica a coxinense em entrevista à Continente, sob uma árvore da Praça da Liberdade, durante uma tarde do 19º Festival de Inverno de Bonito este ano. Ela participou da programação do evento em uma mesa de debate sobre produções literárias feitas por mulheres no estado.



Sua mãe é a mais velha de nove filhos e a única que concluiu o ensino superior – ela se formou em História. Segundo Gleycielli, possivelmente isso despertou para que ela e seus irmãos procurassem seguir os mesmos caminhos nos estudos. “Tenho primas que seguem no mesmo sistema das minhas tias. Isso é uma coisa que precisa ser quebrada, essa cultura de que a mulher só tem que cozinhar, trabalhar para a fazenda e ser esposa. Uso minha escrita justamente para falar sobre isso”, explica, mas reconhece que cabe às próprias mulheres decidir o que fazerem com suas próprias vidas. Gleycielli e Agripina acabam sendo exemplos de protagonismo feminino para diversas artistas. Duas mulheres indígenas que escrevem suas próprias histórias.

“Meus amigos de Coxim sempre dizem que na hora de declamar poesia, entra meu lado atriz. Gosto de declamar porque meu objetivo é fazer sentir e colocar a poesia no coração das pessoas”, explica a atriz-poeta sobre o modo que se relaciona com os textos. Em seguida, emenda com versos de Bicho e gente, demonstrando que para ela, a palavra está impregnada de artifícios da performance e do teatro. Mas faz questão de pontuar que essa oralidade não se resume à técnica, pois muito disso vem da tradição, que é passada de maneira hereditária desde seus antepassados. “Minha bisavó, minha avó, meu avô, minha mãe... sempre tiveram o costume de contar causos, transmitir essas lendas. Eu adoro ouvir, agora é minha vez de passar adiante.”



Na família guató, não há tradição de escrita, como normalmente não há entre os povos indígenas. Em tempos remotos, a própria oralidade preservava as diversas línguas das gentes sul-americanas. Nas condições atuais, no entanto, após diversas fases da história do Brasil, que desencadearam o extermínios de inúmeros representantes da etnia, a escrita serve como forma de resistência e preservação. Língua é identidade. Sabendo dessa importância, Gleycielli, apesar de não falar guató, toma conhecimento de vários verbetes. Essa é uma forma de se apropriar ainda mais de sua origem – que de alguma medida, é de todos nós, brasileiros.

“Sou a primeira da geração a registrar, então eu tenho uma baita responsabilidade. A hora que me vi como escritora, falei: ‘Sou escritora, guató, meus avós são vivos. Serei a primeira a registrar esses causos e passar para frente e fazer contação desses causos’”, explica a autora do projeto Vila pequena, título que resgata as histórias, os causos e as lorotas da população ribeirinha pantaneira.

Durante dois anos de pesquisa, Gleycielli ouviu os moradores. “Foi uma delícia ouvir as benzedeiras, as parteiras, os donos de botecos antigos e as pessoas com mais idade. Em 2016, quando abriu o edital do Fundo de Investimento Cultural, decidi fazer o projeto, preencher e enviar. Foi aprovado e consegui este livro lindo, que é todo ilustrado pelo Wendel Bandeira, um artista de Coxim”, conta a artista que encontra inspiração em ver mulheres conquistando seus espaços, senhoras guatós como Dona Catarina, e seguindo a tradição do povo no pôr do sol do Rio Taquari.



ERIKA MUNIZ é graduada em Letras pela UFPE e estudante de Jornalismo da Unicap. A repórter viajou recentemente ao Mato Grosso do Sul, a convite do Festival de Inverno de Bonito.

MONICA RAMALHO é jornalista e sócia da Belmira Comunicação.

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