Curtas

Uma exposição para Ariano e seu armorial

Signos e símbolos do movimento expressos em várias linguagens estão na 'Mostra Armorial 50 anos', no Museu do Estado de Pernambuco (MEPE)

24 de Outubro de 2023

Onça Caetana na abertura da mostra no Mepe

Onça Caetana na abertura da mostra no Mepe

Foto Daniela Nader/Divulgação

Dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta, advogado e professor, Ariano Suassuna idealizou o Movimento Armorial nos anos 1970 com a proposta de aliar cultura erudita e popular nordestina, traduzida em artes plásticas, teatro, cinema e literatura. Toda essa diversidade de linguagens está representada na exposição Mostra Armorial 50 anos, instalada no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), tendo o cordel como participante especial. Para Ariano, os folhetos eram a referência do movimento, abarcando literatura, cinema e teatro em sua narrativa mágica, mesclando vida real e mundo fantástico. 

Ao ingressar no espaço expositivo, um gigantesco painel criado por Paulo Borges – descendente do mais famoso xilogravurista e cordelista José Francisco Borges, mais conhecido como J.Borges – preenche a coluna que corta o museu de cima a baixo. A obra se chama A Chegada de Ariano no Céu, mesmo título do cordel escrito por J.Borges. O painel é única obra exclusiva da versão recifense da mostra, que já percorreu cinco cidades brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Campina Grande) e atraiu 300 mil pessoas. A expectativa é de que a mostra chegue a João Pessoa, na Paraíba, terra do escritor.

As mais de 140 obras que ocupam o térreo e as três galerias do piso superior do Mepe foram garimpadas pela curadoria em acervos de colecionadores particulares e instituições - como a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o Museu da Arte Moderna Aluísio Magalhães (Mamam) e a Oficina Brennand. Como Ariano considerava o artista xilogravurista Gilvan Samico (1928-2013) “o mais armorial dos armoriais”, este ganhou uma sala especial. Inclusive acrescida de pinturas, linguagem pouco conhecida pelo seu público.

Padre Cícero Romão (1974) é uma das desconhecidas pinturas de Samico. Foto: Daniela Nader/Divulgação

A obra Padre Cícero Romão (1974), um óleo sobre aglomerado, figura entre seus quadros. “[O curador] Moacir dos Anjos, quando foi diretor do Mamam [Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães] fez uma publicação com textos sobre Samico e assinados pelo próprio. Nela, soube que Samico lamentava por não ter suas pinturas reconhecidas”, conta a premiada curadora da mostra, Denise Mattar, que confessou ter ficado surpresa ao saber que Ariano foi também um artista das tintas, telas e pincéis, quando convidada para realizar o projeto idealizado pela produtora da mostra, Regina Rosa de Godoy.

Miguel dos Santos, um dos artistas armoriais presentes na mostra. Foto: Daniela Nader/Divulgação

Após se debruçar sobre os atores do armorial, Denise chegou aos protagonistas Manuel Dantas Suassuna, artista e filho de Ariano, e Carlos Newton Júnior, grande estudioso da obra armorial. Ambos se tornaram fonte essencial para a curadora elaborar a exposição, que conta com obras de Dantas e de outros artistas como Zélia Suassuna, Miguel dos Santos, Aluísio Braga, Lourdes Magalhães e Romero Andrade Lima. 

Foi Carlos quem disse a Denise que a UFPE é detentora de um acervo armorial doado pelo próprio Ariano, em um exercício curatorial que muniu Denise de propriedade para pensar o acervo expositivo. “O conjunto da UFPE faz parte da fase experimental do armorial, um período importante sobre o qual não há registros. Apenas um folheto em que Ariano descreve as obras”, conta Mattar, que esteve em Pernambuco antes da pandemia da Covid-19 para conversar com parentes de Ariano e colecionadores particulares de sua obra. Não fosse a covid, a expo comemorativa teria sido inaugurada na data redonda do cinquentenário do extinto movimento: 2020.

Acahuan, Infância e A Viagem (1980), de Ariano Suassuna. Foto: Daniela Nader/Divulgação

A mostra apresenta três quadros de Ariano que foram encomendados ao artista, nos anos 1980, para decorar o hall do Internacional Palace Hotel, um dos primeiros hotéis cinco estrelas do Recife, cujo projeto foi assinado por Janete Costa (1932-2008) e Acácio Gil Borsoi (1924-2009). Atualmente os quadros pertencem a um colecionador particular. Acahuan, Infância e A Viagem fazem parte da série Dez Sonetos com Mote Alheio (1980), em que Ariano pinta em iluminogravura, mix de iluminura – pintura usada nas letras capitulares dos pergaminhos medievais – e gravura que alia texto literário e imagem. “Considero a obra uma autobiografia poética”, diz Denise. Outras iluminogravuras também estão em exibição no Mepe. 

Figurinos do filme A Compadecida (1969), feitos a partir de desenhos de Brennand. Foto: Daniela Nader/Divulgação

Auto da Compadecida, peça teatral escrita em 1955 pelo paraibano, foi adaptada para o cinema em duas ocasiões. A Compadecida, longa-metragem de 1969,  foi dirigido por George Jonas e teve figurinos desenhados por Francisco Brennand (1927-2019) em nanquim e aquarela sobre papel. Tanto os desenhos do eterno mestre da Várzea quanto as recriações das vestimentas podem ser apreciados na mostra. 

Colega de escola de Ariano, Francisco se considerava mais sexual do que armorial. Os desenhos que ostentam sua assinatura foram criados antes do movimento ganhar vida. Já o longa-metragem O Auto da Compadecida (2000), dirigido por Guel Arraes, alcançou a maior bilheteria daquele último ano do século passado, quando foi lançado, e exibe óbvia inspiração armorial adaptada à linguagem contemporânea da sétima arte. A história contada pelo idealizador do movimento é sua criação mais popular.

No quesito figurino, há ainda os que foram criados por Dantas para o Grupo Grial de Dança, idealizado em 1997 por Ariano e pela dançarina e coreógrafa Maria Paula Costa Rêgo. Nas peças, destaque para as estamparias repletas de signos armoriais, composto por figuras de animais de quatro patas alados (a personagem do mito sertanejo Onça Caetana, que na mostra ganha dimensões gigantes e foi confeccionada pelo bonequeiro mineiro Agnaldo Pinho), castiçais e tipografia inspirada nos terríveis ferros cunhados para marcar a carne dos bois. A partir delas Ariano criou o que chamou de alfabeto sertanejo, registrado no livro Ferros do Cariri, uma heráldica sertaneja (editora Guariba, 1974). Nesta obra, que teve tiragem de 500 cópias, um exemplo da relação entre literatura e universo pictórico que Ariano tanto apreciava criar. 

Prova disso são os manuscritos margeados por símbolos e signos que Ariano desenhava enquanto escrevia. Eles deram origem ao romance Dom Pantero no Palco dos Pescadores, último livro do escritor concluído poucos dias antes de sua morte, e editado pela Nova Fronteira, em 2017. Essa e outras obras de Ariano receberam capas com desenhos de Ariano, revelando a riqueza gráfica dos símbolos armoriais, e foram impressas em forma de estandarte para compor a expo. Algumas reproduções de capas de álbuns do Quinteto Armorial, extinto grupo de música instrumental forjado no movimento, ajudam a afirmar a estética do paraibano.

Não faltaram trechos das famosas aulas-espetáculo, representações dos folguedos populares como o reisado, maracatu e cavalo-marinho, e uma cronologia ilustrada com fotos raras de Ariano e do movimento que criou. Outro espaço traz fotos das ilumiaras, “conjuntos artísticos diversos, surgidos a partir da integração de vários gêneros (pintura, escultura, arquitetura etc.) e que podem ser compreendidos como locais de celebração da cultura brasileira”, segundo definição de Carlos Newton Júnior.

SERVIÇO

Mostra Movimento Armorial 50 anos

Museu do Estado de Pernambuco (MEPE), Avenida Rui Barbosa, 960, Graças, Recife-PE

Até 7 de janeiro de 2024

Horários de visitação:

terça a sexta-feira, das 9h às 17h;

sábados e domingos, das 14h às 17h.

 

 

 

 

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