Curtas

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

Conciliação com o absurdo da vida contemporânea

TEXTO Danilo Lima

01 de Agosto de 2022

Michelle Yeoh, ícone do cinema asiático, vive a protagonista Evelyn

Michelle Yeoh, ícone do cinema asiático, vive a protagonista Evelyn

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 260 | agosto de 2022]

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Em uma realidade marcada pelo excesso de imagens, discussões e possibilidades como a nossa, cada novo filme lançado tem grande chance de se tornar apenas mais uma peça desse turbilhão de ruído pós-moderno, fadada ao esquecimento precoce ou ao esvaziamento de significado. Diante desse contexto, não haveria realizadores mais apropriados do que a dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert – também conhecidos como Daniels – para filosofar sobre o absurdo que é a vida contemporânea. Declaradamente maximalistas, os diretores constroem uma obra que abraça o excesso e a mutabilidade do nosso tempo, sem restringir seus gêneros, suas temáticas e, principalmente, sua criatividade.

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo acompanha Evelyn (Michelle Yeoh), uma imigrante chinesa nos Estados Unidos que batalha para conciliar a administração de uma lavanderia à beira da falência com os problemas familiares. Além dos preparativos para a festa de ano novo chinês, ela ainda tem que lidar com um pai rigoroso (James Hong), o fim iminente do seu casamento com Waymond (Ke Huy Quan) e a tensa aceitação da sua filha gay, Joy (Stephanie Hsu). Durante um encontro com a auditora da Receita Federal Deirdre (Jamie Lee Curtis), Evelyn recebe uma tecnologia que permite saltar entre realidades e a missão de combater um ser maligno que pode causar a destruição de todo o multiverso.

Apesar do roteiro original, essa não é a primeira vez que os Daniels trabalham com a ideia de linhas temporais alternativas. Em 2014, a dupla disponibilizou na internet o tocante curta interativo Possibilia, que permite ao espectador passear por diferentes perspectivas de um término amoroso. Desde então, o conceito de multiverso só foi se tornando mais presente e popular no cinema, tendo atingido seu maior sucesso financeiro com os blockbusters da Marvel como Homem-Aranha: Sem volta para casa e Doutor Estranho no multiverso da loucura. Contudo, se nesses últimos casos a ideia é utilizada principalmente como artifício de fan service que já demonstra sinais de enfraquecimento, em Tudo em todo lugar ao mesmo tempo o multiverso recebe o devido espaço para aprofundar algumas de suas possibilidades visuais e narrativas.

Do mais cult, como um universo metalinguístico e inspirado na estética do cineasta chinês Wong Kar-Wai, ao mais esdrúxulo, caso de um mundo no qual os humanos têm dedos de salsicha; o filme explora tudo sem receio do ridículo. Se alguns elementos parecem desconjuntados e saídos de um brainstorm não revisado, logo os diretores revelam sua intenção, mesmo quando essa é o completo nonsense. Para conter tanta coisa em 2h19min, com um relativamente pequeno orçamento de 25 milhões de dólares e uma equipe reduzida de efeitos visuais, foi preciso não só de muita inventividade e efeitos especiais práticos, mas também da liberdade criativa dos realizadores possível quase somente em produções independentes.

Seguindo a tendência de desconstruir gêneros, o longa é um amálgama de aventura de ação, comédia, ficção científica e drama. Devido a um equipamento que permite acessar habilidades de outros universos, abre-se uma gama de técnicas e estilos de luta para compor as variadas sequências de ação. Sendo o primeiro filme da A24 no gênero, a ação foge do ocidentalismo picotado das cenas e remete muito mais ao cinema de Hong Kong, desde o uso criativo de objetos, como nos filmes de Jackie Chan, até o humor escrachado dos besteiróis de Stephen Chow. Com uma curva de aprendizado instigante e cenas muito bem-coreografadas, o deslumbramento visual garantido funciona convenientemente também para baixar a guarda do espectador para o verdadeiro ponto do filme.


O longa traz elementos de vários gêneros, como aventura de ação, comédia, ficção científica e drama. Imagem: Divulgação

Se no primeiro longa dos Daniels, o maravilhoso Um cadáver para sobreviver, os diretores utilizam do humor escatológico para resolver as tensões existencialistas do autoconhecimento, dessa vez a dupla vai mais fundo ao acrescentar a preocupação cosmológica, externa ao indivíduo. Como dar algum propósito à nossa vida se todo o universo não tem sentido? Para o Absurdismo, teoria filosófica com raízes no séc. XIX e maior reconhecimento com os textos de Albert Camus, esse conflito possui apenas três soluções: o suicídio, a crença religiosa, ou, a única apoiada por Camus, a rebelião contra o absurdo da existência, dando significado às pequenas coisas da nossa vida rotineira. Essa rebelião, ou conciliação com o absurdo, parece ser a resposta dada pelo filme ao contrapor as perspectivas da heroína e da antagonista em um embate não apenas físico, mas filosófico.

E claro que tamanha questão só poderia ser discutida efetivamente através da identificação do espectador com os dramas pessoais dos personagens, que vão de conflitos familiares básicos até trauma transgeracional (tema contido também em animações recentes como Encanto e, especificamente para o público de imigrantes asiáticos, Red). Liderando o elenco, Michelle Yeoh entrega uma de suas performances mais ricas e não convencionais, com abertura para explorar sua sensibilidade, seu timing cômico e até suas próprias habilidades com dança e luta – algo especialmente raro em Hollywood, que lança atrizes de meia-idade ao ostracismo ou papéis secundários.

Elevado por muitos já à posição de um clássico moderno, o filme naturalmente passará a receber backlash pela alta expectativa. Se no ato final, os diretores parecem ficar um pouco cheios de si com a própria ideia ao ponto de repeti-la desnecessariamente, isso não é menos que o esperado para alguém que conheça o pretensiosismo dos Daniels, visível até em curtas, como Interesting ball (uma possível semente do que viria a se concretizar agora). E aqui digo “pretensioso” não no sentido pejorativo usado comumente por críticos para afirmar uma superioridade intelectual. Os Daniels são pretensiosos (e que bom por isso!), do contrário não haveria a ambição necessária para realizar obras como essa, que tentam abarcar tantos elementos no mesmo caldeirão criativo e cheio de intenções.

Ainda assim, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo é digno do seu alongado título e revela que este é o mais honesto e sintético possível. É um filme que combina perfeitamente com um tempo em que temos acesso instantâneo a infinitas realidades dentro do nosso bolso. Ele não busca resignar o público com relances de tudo que poderíamos ter sido, mas mostrar como é possível deixar de lado a ansiedade causada pelo caos contemporâneo e fazer escolhas que tornem a nossa “linha temporal” mais significativa para nós e aqueles ao nosso redor. É grandioso e intimista, escrachado e filosófico, bobo e emocional; tudo ao mesmo tempo.

DANILO LIMA é jornalista em formação pela UFPE.

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