Se no primeiro longa dos Daniels, o maravilhoso Um cadáver para sobreviver, os diretores utilizam do humor escatológico para resolver as tensões existencialistas do autoconhecimento, dessa vez a dupla vai mais fundo ao acrescentar a preocupação cosmológica, externa ao indivíduo. Como dar algum propósito à nossa vida se todo o universo não tem sentido? Para o Absurdismo, teoria filosófica com raízes no séc. XIX e maior reconhecimento com os textos de Albert Camus, esse conflito possui apenas três soluções: o suicídio, a crença religiosa, ou, a única apoiada por Camus, a rebelião contra o absurdo da existência, dando significado às pequenas coisas da nossa vida rotineira. Essa rebelião, ou conciliação com o absurdo, parece ser a resposta dada pelo filme ao contrapor as perspectivas da heroína e da antagonista em um embate não apenas físico, mas filosófico.
E claro que tamanha questão só poderia ser discutida efetivamente através da identificação do espectador com os dramas pessoais dos personagens, que vão de conflitos familiares básicos até trauma transgeracional (tema contido também em animações recentes como Encanto e, especificamente para o público de imigrantes asiáticos, Red). Liderando o elenco, Michelle Yeoh entrega uma de suas performances mais ricas e não convencionais, com abertura para explorar sua sensibilidade, seu timing cômico e até suas próprias habilidades com dança e luta – algo especialmente raro em Hollywood, que lança atrizes de meia-idade ao ostracismo ou papéis secundários.
Elevado por muitos já à posição de um clássico moderno, o filme naturalmente passará a receber backlash pela alta expectativa. Se no ato final, os diretores parecem ficar um pouco cheios de si com a própria ideia ao ponto de repeti-la desnecessariamente, isso não é menos que o esperado para alguém que conheça o pretensiosismo dos Daniels, visível até em curtas, como Interesting ball (uma possível semente do que viria a se concretizar agora). E aqui digo “pretensioso” não no sentido pejorativo usado comumente por críticos para afirmar uma superioridade intelectual. Os Daniels são pretensiosos (e que bom por isso!), do contrário não haveria a ambição necessária para realizar obras como essa, que tentam abarcar tantos elementos no mesmo caldeirão criativo e cheio de intenções.
Ainda assim, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo é digno do seu alongado título e revela que este é o mais honesto e sintético possível. É um filme que combina perfeitamente com um tempo em que temos acesso instantâneo a infinitas realidades dentro do nosso bolso. Ele não busca resignar o público com relances de tudo que poderíamos ter sido, mas mostrar como é possível deixar de lado a ansiedade causada pelo caos contemporâneo e fazer escolhas que tornem a nossa “linha temporal” mais significativa para nós e aqueles ao nosso redor. É grandioso e intimista, escrachado e filosófico, bobo e emocional; tudo ao mesmo tempo.
DANILO LIMA é jornalista em formação pela UFPE.