Há também repetições de itens, como “celular”, que aparece em ambas listas-poesia Coisas que perco com frequência e Coisas que gostaria de perder mais vezes. A obra está cheia desses pequenos detalhes que revelam os desejos da escritora. Mas ela não está sozinha em seus anseios, leitores capazes de captar essas nuances também manifestam um pouco de si nas páginas. É uma leitura empática e de reflexo, inúmeras situações são vivências de muitos, em especial mulheres cis e jovens, como a poeta.
Relacionamentos, sexo, estética, política e questões existências ganham espaço consonante, empregados na mesma medida, sem exaltar ou desmerecer um assunto em detrimento de outro. É uma leitura que deixa um sorriso no canto da boca, seja pela simplicidade ou pela ironia das palavras e comparações. Mas também se lê reflexões mais densas, como é o caso do poema Coisas que levam tempo, em que escreve no último verso “oito minutos e quarenta e seis segundos”. Uma cronometragem que virou marco para a luta antirracista do Black Lives Matter, fazendo referência ao período exato que o joelho do policial ficou pressionando o pescoço do americano George Floyd até levá-lo à morte, em maio de 2020.
Outro ponto de densidade está no poema Coisas nas quais ainda tenho esperança: uma página em branco. A ausência se tornando poesia. Lemos um sentimento que se tornou quase unânime na sociedade pandêmica, que ainda hoje trafega entre incertezas, sem palavras. Alguns dos poemas são de uma época pré-coronavírus, mas outros foram reformulados durante esse período. “Por uma questão de sobrevivência e resistência, pensei que seria importante lançar alguma coisa durante esse período de pandemia, de restrições e de luto, em que somos governados por um psicopata criminoso. Então recuperei as listas, as ampliei, coloquei algumas referências diretas ao período em que vivemos”, informa Mussnich.
É preciso ser leitor de duas maneiras diferentes para absorver a obra por completo. Por um lado, estar aberto a se identificar com as palavras. Por outro, estar envolvido o suficiente para interpretar e absorver as ilustrações que acompanham os versos. Isso porque todo o livro recebe os desenhos minimalistas da artista Tânia Ralston; cada poema, uma imagem.
Ilustrações de Tânia Ralston. Imagem: Divulgação
Através de traços contínuos, que se contorcem e se endireitam, que unem e separam, formam rostos, seios, braços e pontuações, as ilustrações dialogam com aquilo que é lido. Além disso, incorporam frases ditas pela poeta num misto de prosa-desenho. “À medida que eu lia cada poema, desenhava-o na sequência. A ideia era não perder o instinto primeiro que o poema me transmitia”, comenta a ilustradora.
Como a própria poeta disse: “O livro é uma ode à coisa”. Uma ode àquilo que nos cerca em pensamentos, que extravasamos em palavras não proferidas, nas listas guardadas no fundo da gaveta, da memória. Pontuar essas fantasias realistas que surgem, que podem se fixar ou se esvair na memória, é uma técnica terapêutica de se encarar a vida e todos os seus percalços. Talvez, listar tudo seja uma forma de compartilhar com o exterior aquilo que preenche o vazio interno. Quem sabe, nem tudo seja coisa só da nossa cabeça, afinal.
TAYNÃ OLIMPIA é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.