Curtas

TOZ - Cultura Insonia

A Caixa Cultural Recife recebe exposição de Tomaz Viana, que traz o universo de uma entidade noturna e onipresente criada pelo artista em 2010

TEXTO Samanta Lira

21 de Dezembro de 2018

Toz incorpora referências de suas experiências pessoais, estabelecendo um diálogo entre passado e presente

Toz incorpora referências de suas experiências pessoais, estabelecendo um diálogo entre passado e presente

Foto Rafael Martins/Divulgação

Um homem acorda no meio da noite e, ao olhar em volta de seu quarto, percebe que o ambiente está diferente. Dentre os elementos que fazem parte dessa atmosfera distinta, está a capa de seu disco dos Beatles. Os integrantes da banda britânica de rock têm seus olhos em formato de losango, que brilham em meio à escuridão. A cena descrita integra a exposição que passou pelo Centro Cultural Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, em 2014, a Metamorfose, com autoria de um dos nomes mais importantes da arte urbana nacional: Tomaz Viana, ou Toz, como é conhecido. O personagem dessa instalação acaba de se tranformar num devoto do Insonia, uma entidade noturna e onipresente, criada pelo artista visual quatro anos antes.

Para materializar a passagem da noite – personificada no Insonia – para o dia, a metamorfose referida simboliza a trasformação desse personagem em um novo: o Vendedor de alegria, inspirado num homem que vendia bolas coloridas numa praia carioca, embaixo de um sol escaldante. "Qual é o interesse principal desse cara? Ele vende um produto que não é de primeira necessidade. O foco dele é a alegria. Uma questão atemporal e que merecia ser retratada artisticamente", conta Toz em entrevista à Continente. As produções do grafiteiro são marcadas por personagens que dialogam com suas experiências pessoais. "Meu trabalho tem muita relação com a minha vida. Eu assimilo o que vivo e me aproprio para gerar influências", completa.

Nessa lógica de absorver as suas vivências, nasceu o Insonia, numa época em que Toz estava frequentando a vida noturna mais intensamente e sentiu a necessidade de homenagear os seus componentes. Começou pintando todo de preto um de seus personagens, fazendo com que perdesse as características faciais. Foi aí que o artista criou os olhos de losango, que viraria a marca registrada do Insonia.

Agora, a Galeria 1 da Caixa Cultural Recife recebe a sua TOZ – Cultura Insonia, que permanece em cartaz até 17 de fevereiro do ano que vem. Se anteriormente o artista retratou as origens do personagem e de seu povo – partindo do indivíduo para, então, explorar sua genealogia e a fundação das suas memórias –, a atual mostra se dedica ao processo natural de outras descobertas em torno da diversidade desse povo. As obras são preenchidas com a história dessa civilização imaginária e a natureza que a cerca, ao mesmo tempo em que coloca em evidência sua cultura e miscigenação, permeadas por aspectos que dialogam com questões sobre territorialidade e ciclos migratórios.

"O Insonia é o rei de um povo que não existe? Tem que ter um povo. E esse é o que transita pela terra. É um povo que está em todos os lugares", explica o artista. Foi assim que os movimentos de migração em torno do mundo o influenciaram na criação do povo Insonia. Inicialmente, o personagem era apenas uma figura da noite. Mas, após um processo de aprofundamento, Toz identificou uma relação com suas origens. Nascido na capital baiana, o artista possui uma ligação ancestral com as religiões de matriz africana: "Fui pesquisar sobre minhas raízes em Salvador, na Feira de São Joaquim, e comecei a entender que o Insonia era mais do eu pensava. Era algo meio místico, meio entidade, meio Exu... E essas influências foram se misturando para eu chegar na forma que ele tem hoje".

Em sete telas e 18 esculturas, além de intervenções no espaço expográfico, o público é convidado a dar um mergulho nesse universo, até incorporá-lo numa instalação submersiva, pensada para o momento que sucede todo o contato com a Cultura Insonia. Para essa exposição no Recife, o artista criou um conjunto inédito de esculturas, intitulado Herança cósmica, que demonstra a resistência dessa cultura e sua travessia no tempo, desde as primeiras civilizações até os tempos atuias.

Esse diálogo entre passado e presente, aliás, é um aspecto que toma forma em diversos pontos do trabalho. Exemplo disso está em uma das telas que abrem a mostra. Misturando diversas técnicas de pintura, Insonia encontra-se sentado numa espécie de trono. Uma figura negra com certo tom ancestral – refletido em traços finos e brancos riscados em desenhos por todo o corpo – que carrega um manto feito de uma exótica penagem, lembrando a figura de um rei. As "jóias" de lantejoulas, dispostas por sua estrutura, completam o figurino. Em contraste a esses componentes, encontra-se uma caneca de café, apoiada na lateral do assento, em referência ao homem da contemporaneidade que sofre de insônia.


Foto: Rogério Resende/Divulgação

Tolerância, diversidade, pertencimento, sincretismo, ressignificação, afetividade, memória, ancestralidade... Temas que mesclam-se através do lúdico, com o propósito único de gerar reações. E para sentir de fato a exposição, o visitante deve se desamarrar de qualquer tentativa de definir o estilo artístico que abraça as obras. É um treino para o olhar ímpar, para desmitificar a visão do negro, do escuro, da noite, como algo negativo. Perseguindo esse objetivo, o Insonia é usado de modo a defender a alegria e a beleza desses elementos.

No próximo sábado (22/12), Tomaz Viana ministrará a oficina Desenho de Criação de Personagens e Letras do Grafite, com o objetivo de aproximar o público em geral da arte urbana. Serão duas turmas, às 14h e às 15h30, e as senhas serão distribuídas 30 minutos antes do início de cada. Em seguida, às 17h, haverá um bate-papo sobre a exposição.

SAMANTA LIRA é estudante de jornalismo da Unicap e estagiária da Continente.

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