Curtas

Tom vermelho do verde

Frei Betto narra massacre contra os Waimiri-Atroari

TEXTO Paulo Cezar Soares

03 de Janeiro de 2023

Imagem Karime Xavier/FolhaPress

[conteúdo na íntegra | ed. 265 | janeiro de 2023]

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O assassinato de Bruno Pereira, 41 anos, e do jornalista inglês Dom Phillips, 57 anos, na região amazônica, teve repercussão internacional, com manchetes de primeira página em jornais de todo o mundo. Bruno, funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), foi exonerado do cargo da Coordenadoria Geral de Índios Isolados, sem qualquer justificativa, após expedição contra o garimpo ilegal na terra indígena Vale do Javari, em 2019. Trata-se da maior terra indígena do Brasil, localizada no extremo oeste da Amazônia, na fronteira com o Peru e a Colômbia.

Dom Phillips, que acompanhava Bruno, estava realizando um trabalho de apuração para um livro sobre o meio ambiente. Desapareceram no dia 4 de junho último e, após mais de uma semana sumidos, foram encontrados alguns pertences e constatado o assassinato, com a descoberta dos corpos. Ambos foram mortos a tiros.

E é nesse contexto de violências de toda ordem que Frei Betto, frade dominicano, filósofo, jornalista e escritor, lança seu livro Tom vermelho do verde (Rocco) – uma denúncia, mas também um romance histórico, contendo documentos inéditos, que descrevem os momentos trágicos vividos pelos indígenas Waimiri-Atroari, a partir da construção BR-174, Manaus – Boa Vista, passando por suas terras. “Para escrevê-lo, foram cinco anos de intenso trabalho. Em 1988, li o livro Massacre, do padre Sabatini, a respeito da expedição chefiada por um sacerdote italiano e aprovada pela Funai, que visava convencer os Waimiri-Atroari a deslocarem suas aldeias do percurso pelo qual passaram a BR-174. O relato me chamou muita atenção por envolver missões supostamente religiosas interessadas nas riquezas minerais da Amazônia, repressão da ditadura aos indígenas, uso da Funai como braço do regime militar etc. Fiquei ‘grávido’ da ideia de transformar aquilo em um romance. Em 2017, iniciei o trabalho. Li quase uma centena de livros sobre indígenas e Amazônia. E consultei indigenistas”, revela Frei Betto.


Imagem: Divulgação

A violência, o tom intimidatório da ditadura militar e a manipulação religiosa atuaram em conjunto na perseguição aos indígenas, considerados um povo ocioso, rebelde, um empecilho para o progresso, representado pela construção da BR-174. “Cerca de 2.500 índios foram mortos por metralhadoras, bombas, napalm, incêndios de malocas e desaparecimentos. Os militares sempre tiveram uma relação dúbia com a Amazônia. De um lado, o senso nacionalista: defendê-la e evitar que a cobiça internacional a explore. Do outro, a subserviência diante dos interesses das multinacionais e governos estrangeiros, como o dos EUA. Nunca, porém, uma postura de preservação ambiental e valorização dos povos originários, que sabem manter a floresta em pé. No período da ditadura foi dado o sinal verde para o agronegócio. Isso é um capítulo da história do Brasil muito pouco conhecido”, explica o autor, que possui 73 livros publicados e foi agraciado com o Jabuti em 1982, um dos prêmios literários mais importantes do país. Neste mesmo ano, foi eleito Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores, que lhe concedeu, em 1985, o Prêmio Juca Pato, pelo seu livro Fidel e a religião.

Assim como ocorreu no passado, permanecem a negligência e a falta de conhecimento da sociedade em relação aos índios, a despeito de alguns nomes que ganharam visibilidade pelo seu trabalho profícuo em defesa da causa indígena, como os irmãos Villas-Bôas – Orlando (1914); Cláudio (1915-1998) e Leonardo (1918-1961) – seguidores dos princípios humanitários do marechal Rondon (1965-1958), militar e sertanista que atuou na proteção dos povos tradicionais do Brasil. Para o autor, o descaso com os povos indígenas faz parte da cultura predominante no país, reproduzida nas famílias e nas escolas. “Povos indígenas são considerados peças de folclore, resquícios do passado e os poucos que restam precisam ser integrados à ‘civilização’. Como se o nosso modo de viver nos centros urbanos fosse infinitamente melhor do que o modo deles viverem em suas aldeias. Nós, citadinos, temos uma solene ignorância sobre a riqueza antropológica e ambiental que representam as comunidades indígenas. São como extraterrestres encarados pelo olhar prepotente de terráqueos”, critica.

A via-crúcis dos indígenas parece não ter fim e esse é um dos pontos enfatizados em Tom vermelho do verde (leia trecho). Permanece o preconceito, a polêmica, estabelecida já há algum tempo, em relação ao Marco Temporal, tese jurídica que procura alterar a política de demarcação de terras indígenas no país. Uma ação no Supremo Tribunal Federal diz que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam em 5 de outubro de 1988, quando entrou em vigor a Constituição. Em seu artigo 231, a Constituição Federal estabelece que os Direitos Indígenas são direitos originários. Portanto, anteriores à própria formação do Estado brasileiro.

Essa tese do Marco Temporal ganhou visibilidade no governo de Michel Temer, em 2017, com o julgamento sobre a terra indígena Raposa do Sol, em Roraima, onde ocorreu um conflito entre índios e arrozeiros. O STF julgou que a terra pertence aos indígenas por estarem no local quando foi promulgada a Constituição Federal. Mas a Advocacia Geral da União (AGU) julgou que o caso em tela é específico, servindo apenas para a Raposa do Sol. Isso incentivou algumas associações com a Bancada Ruralista, que entrou com ações contra demarcações de novas terras indígenas.O parecer está suspenso desde outubro do ano passado e a decisão foi adiada por tempo indeterminado. “Acredito que o STF vai rejeitá-lo. Ele contraria a Constituição. É uma aberração e um retrocesso”, assegura Frei Betto. A rodovia BR-174 foi oficialmente inaugurada em 6 de abril de 1977.

PAULO CEZAR SOARES é jornalista.

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