Todo ar traz, além da voz de Isadora, o bandolim de Rafael Marques, seu companheiro, e, na faixa Corpo de uma flor, o contrabaixo de Walter Areia e a voz do cantor Marcello Rangel (que faz o coro junto a Rafael). Esse minimalismo, que nos leva ao mais substantivo da canção, e essa delicadeza enfatizam o canto de Isadora, belo por si, e o que ela diz em suas canções. Especialmente porque, neste EP, Isadora desvela a compositora que é. Ela traz à tona, pela primeira vez, suas composições assinando todas as cinco músicas do EP, sendo duas delas em parceria: Corpo de uma flor, com Martins, e Todo ar, com Martins e Juliano Holanda.
O EP vem seis anos depois da estreia fonográfica solo de Isadora, o álbum Vestuário (2016), e foi produzido num momento muito particular para o mundo e especialmente para a artista. Ao mesmo tempo em que estamos confinados, devido à pandemia da covid-19, Isadora foi mãe do pequeno Sereno – hoje com 1 ano e 5 meses. A experiência da maternidade, que se abria para ela, e a necessidade de recolhimento deram o tom do que Isadora transpôs para as suas canções.
Assim como vários discos lançados durante a pandemia, Todo ar surge como uma alternativa a outro disco que a artista pretendia botar no mundo. Anagrama, que será o segundo álbum de Isadora, já estava em seus ajustes finais quando, em março de 2020, o Brasil acompanhou o movimento mundial de confinamento e isolamento social. “Acertei que não queria lançar o disco na pandemia”, conta Isadora. “Só que, por essa espera (pelo fim da pandemia), eu senti que eu precisava fluir, de alguma forma”, explica. Então, começou a se desenhar Todo ar, que, segundo ela, “é um respiro entre Vestuário e o que vai ser Anagrama”.
RESPIRAR, CONTEMPLAR
Diferentemente de Vestuário, que trazia uma relação com um tempo mais pautada na nostalgia, Todo ar é um convite à contemplação do tempo acontecendo, de poder parar e reparar no tempo natural das coisas, em contrapartida ao ritmo imediatista da nossa contemporaneidade. “Todo ar é observar pacientemente a folha do jambeiro caindo na varanda da minha casa, que fazia muito tempo que eu não percebia. É estar com Sereno, que preciso ter um tempo de entender que ele vai me falar alguma coisa, é tudo estendido. É muita paciência e contemplação. É essa tentativa constante de estar atenta às coisas que estão aí na vida e a gente tá deixando passar. A demanda é outra, é outro estado de atenção, diferente do que vivemos hoje, das respostas imediatas”, conta.
Essa percepção/relação da maternidade e do tempo está presente logo nas duas primeiras faixas de Todo ar. O dia se descortina em Como o sol da manhã, que ela fez para o filho, explicando para ele “as coisas do mundo”, como ela diz: “Tem o vento e o rio/ Sentir frio e calor/ Tem a praia, a areia/ Tem o cheiro hortelã (...) Tem as cores/ e a guerra, eles inventarão”, canta.
Foto: Luara Olívia/Divulgação
Na sequência, Corpo de uma flor, em parceria com Martins. A relação orgânica – e, também, além disso – entre duas existências que se coabitam, mãe e filho. “Você, deusa e menino/ Eu, feito mulher/ Me faço mãe/ Gaia/ Aterro, fico e cuido (...) Dois corações em um/ atalhos e soluços”, lembra Isadora, na canção, sobre sentir os soluços do filho ainda em sua barriga. E o porvir, no belíssimo refrão: “E vira água/ E vira leite/ Queimando dentro até o céu iaiá/ E vira dança/ E vira crença/ E vira oficio de todo dia”.
A faixa Azeite, limão e sal lembra alguém preparando o almoço, em que há um prazer de fazer a própria refeição, e é também contemplar esse momento, como confirma Isadora sobre gostar de comida (“de fazer e de comer”, ressalta ela). É o prazer e uma alegria que há nessas coisas aparentemente triviais, que, por vezes, fazemos no automático. A associação entre o que se come e a vida em casa, nessa lida, rendeu versos e sacadas divertidas e geniais. Coloque essa música para tocar quando for preparar e/ou comer o que você mais gosta.
Em seguida, Sábio senhor, uma canção – e uma reflexão – sobre a impermanência e os descaminhos na vida, percebidos (e/ou resolvidos) pelo tempo: Com(o) o tempo, as coisas passam, até mesmo o quinhão de responsabilidade que nos cabe sobre o que acontece no momento no planeta, na sociedade, no país. “As coisas passam, né? É olhar pra trás e perguntar se valeu – ‘Valeu a dor deste parto ingrato ou não?’. Porque a gente tá fodendo o mundo, a gente não tá sabendo dividir esse espaço. Todo dia, uma notícia trash. No final, eu sempre tento dar uma alegria pra mim mesma, de que as coisas passam, e eu tenho uma esperança que a gente vai encontrar uma maneira de sair disso cooperativamente.” Para boa parte dos ouvintes, a esperança vem realmente no final da canção: “Promessa de ver depressa a queda do sultão”. Para bom/boa entendedor(a), está na cara de quem Isadora fala.
TODO AR
Canção que fecha o EP e lhe dá título, Todo ar é, como se disse, composição de Isadora com Martins e Juliano Holanda. A canção ganhou clipe dirigido por Luara Olívia e gravado em Bonito (PE), no Sítio do Corredor. E as imagens materializam justamente a percepção sobre a música e o trabalho como um todo: um cenário de interior, a luz do sol, uma suavidade e delicadeza percebidas como acolhimento em um momento de reflexão sobre a passagem do tempo e a construção da vida a que nos destinamos. “Todo ar é um resumo desse momento, de acolhimento, dos (meus) 30 anos, de fazer um balanço médio do que você fez da vida.”
E, dentro desse balanço, perceber a possibilidade e o movimento de Isadora em, neste trabalho, cantar suas próprias canções, seus versos, dizer seus próprios textos/sentimentos, como que num start para um novo momento. Ouvir Todo ar – a música e o EP – é ser convidado a, assim como Isadora, ser atravessado pela natureza desse tempo estendido. Como ela disse à Continente, traduz seu desejo de estar “no meio do mato, embalando uma rede, tomando um cafezinho e cantando umas músicas”.
LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.