Não são poucos os casos em que uma banda, estando no ápice da popularidade e atenção midiática, decide quebrar com o estilo que a levou aos holofotes. Seja ato de rebeldia contra a indústria ou consequência natural das pressões sofridas, foi isso o que aconteceu quando os ingleses do Arctic Monkeys mudaram drasticamente a rota e lançaram a divisiva obra-prima Tranquility Base Hotel & Casino (2018) cinco anos depois do estrondoso sucesso do álbum AM, que levou a banda ao topo do rock mainstream. Agora, em 2022, o grupo prova que o desvio foi apenas o começo de uma nova era, que é continuada em The car, disco lançado mundialmente em 21 de outubro.
Sendo o sétimo álbum de estúdio da banda, contém 10 músicas do vocalista Alex Turner e uma duração total de 37min – o mais curto até aqui. A modéstia do tempo dialoga com os temas intimistas da obra, que reflete sobre amor, memória e carreira, mas são acompanhados pela produção polida e superorquestral de James Ford, que reveste o disco de uma estética retrô e sessentista. Esse clima já pôde ser sentido desde o lançamento do primeiro single, e faixa de abertura, que chegou às plataformas em agosto de 2022. There’d better be a mirrorball é uma balada nostálgica com uma sonoridade diferente de tudo que já foi lançado pelo grupo e um dos grandes acréscimos ao repertório. Seu ar melancólico e vespertino acompanha uma letra que expressa contradições sentimentais que podem ser aplicadas não apenas a um fim de relacionamento, mas também a um final de festa, época ou fase.
Como revelado pelo próprio frontman, a noção de encerramento perpassa conceitualmente todo o álbum, o que não significa um anúncio de fim de carreira. Afinal, mudança de estilo não é uma novidade para o Arctic Monkeys. Com um início marcado pelo garage rock acelerado e juvenil, o domínio das guitarras foi sendo suavizado e complementado por piano na mesma medida em que a velocidade da voz de Turner reduzia.
Linhas de baixo mais nítidas foram acrescentadas em Humbug (2009), riffs de baixa frequência e influências do hip hop tornaram AM (2013) rapidamente cativante e, por fim, os sintetizadores guiaram a experiência de KBH & C. Este último, um álbum conceitual de música lounge e pop psicodélico, rompeu totalmente com a visão dos jovens de cabelos engomados, jaquetas de couro e atitude descolada que havia se consolidado no imaginário popular em sua fase anterior. O momento atual do grupo parece não apenas mais maduro, como também mais tranquilo para experimentar com construções musicais diversas.
Se a banda já havia flertado com outros gêneros que a tirassem do local limitante de “banda de rock”, agora as referências estão muito mais explícitas. Seja na música I ain’t quite where I think I am, com um riff de funk aos moldes de Superstition, do Stevie Wonder, ou em Jet skis on the moat, na qual o grupo navega por um soul suave com traços de B.B. King e Isaac Hayes, fica claro que uma grande inspiração vem da música negra estadunidense.
‘The car’ é o sétimo álbum de estúdio do Arctic Monkeys.
Imagem: Divulgação
Para incorporar totalmente as novas sonoridades, Alex canta em falsete – um tom acima do seu natural – a maior parte do álbum, o que acaba prejudicando a naturalidade da obra, porque, ainda que não erre notas, fica evidente que sua voz não dá conta das próprias referências, como a maestria de Sly ou Marvin Gaye. É, enfim, o melhor soul e funk que se poderia esperar de uma banda britânica de garotos de Sheffield.
Um dos destaques de The car é Sculptures of anything goes, apresentada pela primeira vez em show no Rio de Janeiro. O arranjo grave de baixo e bateria quase estourados, de baixa fidelidade e com reverb, constrói um paredão sonoro arrebatador e sombriamente climático, mesmo com um andar lento. Atestando que a banda escolhe bem seus singles, outra faixa liberada antecipadamente foi a ótima Body paint, que parece ser uma espécie de herdeira espiritual de Four out of five com seu crescendo e estrutura segmentada que termina de forma apoteótica. Este também é talvez um dos álbuns mais cinematográficos do grupo, e isso fica evidente não somente no videoclipe do single – o mais produzido até agora –, em que o visual antiquado se mistura com rolos de filmes, referências estéticas e técnicas datadas de montagem. A já explorada cinefilia do compositor também se faz presente nas letras do disco, como uma menção ao formato de CinemaScope ou até um exercício mental hipotético sobre uma versão Lego do filme de Napoleão nunca realizado por Stanley Kubrick.
Na segunda metade, porém, o disco vai perdendo o fôlego. Algumas faixas são capazes de dispersar a atenção e prejudicar o engajamento do público, como a introspectiva faixa-título The car, na qual Alex rememora férias da infância, ou Hello you, um fluxo de consciência que versa sobre a mudança de rumos da banda de forma extremamente vaga. E esse não é um fenômeno isolado, pois ao longo de várias canções existem ideias soltas e fugazes que dificultam tanto a interpretação do ouvinte como a própria construção de linhas de raciocínio. Somos levados no banco de trás de um eu lírico verborrágico que não conseguimos acompanhar, pois faz dos seus relatos tão pessoais que se tornam emocionalmente inacessíveis, e contraditoriamente impessoais, ao público.
Apesar disso, os temas mais presentes no álbum continuam sendo do âmbito da metalinguagem, na qual Turner se volta para desabafos sobre dificuldades desde a etapa de produção até o estado da banda com seu público e do compositor enquanto artista. Na faixa Big ideas, por exemplo, o vocalista menciona inspirações que não conseguiram ser concretizadas e se perderam ao longo da produção devido ao sobrepujante trabalho de cordas, conjurando o que ele chama de the ballad of what could’ve been (a balada do que poderia ter sido).
Já na melódica e íntima Mr. Schwartz, surge a alusão a uma figura estafada pelo show business, mas que permanece forte pela sua equipe, podendo ser um pseudônimo do próprio Alex Turner, que esteve metade da sua vida sob os olhos da indústria. Esse cansaço reaparece na anticlimática música de fechamento do álbum, Perfect sense, que aparenta expressar a cobrança que o grupo sente ao se apresentar ao vivo em shows tendo uma plateia heterogênea: A revelation or your money back/ That’s what it takes to say good night (Uma revelação ou seu dinheiro de volta/ Isso é o que é preciso para dizer boa noite).
A oportunidade para a banda testar as novas músicas surgiu já em novembro com três shows no Brasil, que abriu a turnê na América Latina, sendo o primeiro no Rio de Janeiro, depois São Paulo e Curitiba. Na primeira edição do Primavera Sound São Paulo, o festival de origem hispânica trouxe o grupo como uma de suas atrações principais, lotando o estacionamento do Distrito Anhembi com fãs de todas as idades. Extremamente confortável em sua quinta visita ao país, a banda trouxe um repertório que misturou novas e antigas para o conforto dos viúvos e viúvas de suas antigas fases. No show, foi performada pela primeira vez ao vivo a faixa-título, assim como outras três do novo trabalho, e ficou visível a discrepância de resposta do público geral, que não abraçou totalmente o lado menos pop do quarteto.
Ainda assim, a banda parece não se afetar tanto com a recepção mista e continua a se aventurar por caminhos que não agradem a todos, sem se acomodar ao conforto da repetição do mainstream. Definitivamente The car não é tão coeso quanto os dois últimos trabalhos da banda e por isso pode ser entendido como um álbum de transição para uma nova etapa ainda à espera de inspiração. Por enquanto, os Arctic Monkeys optam por reduzir a marcha e entregar um agradável passeio à tarde por gêneros diversos e devaneios despretensiosos.
DANILO LIMA é jornalista em formação pela UFPE.