Curtas

Spencer

Um mergulho nas memórias de Lady Di

TEXTO Erika Muniz

01 de Abril de 2022

A atriz norte-americana Kristen Stewart interpreta a princesa no longa

A atriz norte-americana Kristen Stewart interpreta a princesa no longa

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 256 | abril de 2022]

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Narrar a vida de alguém cujo nome está inscrito na História não é exatamente uma tarefa fácil. Seja pela demanda de referências e símbolos que o público costuma presumir, seja pela responsabilidade que o imaginário em torno desses personagens evoca. Para o realizador chileno Pablo Larraín, no entanto, isso não parece ser um empecilho, já que suas escolhas por figuras marcantes da cultura e da política tornaram-se uma característica de sua assinatura. E, no caso de Spencer (2021), seu mais novo trabalho, embora traga um dos nomes mais famosos do século XX, a Princesa Diana, ao centro da narrativa, o cineasta não se propõe a criar uma cinebiografia nos moldes convencionais. Mais do que reproduzir fatos significativos da trajetória de Lady Di, é a partir de um ângulo mais difuso, aproximado e envolvente que mergulhamos em fragmentos das memórias dessa complexa personagem.

Estrelado pela atriz norte-americana Kristen Stewart, o longa se passa em um curto período, durante um feriado natalino da década de 1990. Nesse momento do ano, a família real tem por tradição se reunir no Palácio de Sandringham, uma enorme residência de inverno. Remetendo ao que possivelmente seriam os últimos dias do conturbado casamento entre a Princesa de Gales e o Príncipe Charles, Spencer se desenvolve a partir da ótica de Diana, uma mãe apaixonada pelos dois filhos, William e Harry, que se percebe enclausurada às estruturas e regras que ancoram a coroa inglesa há muitos anos.

Para viver a princesa, que já fora bastante representada em obras audiovisuais – inclusive, que vem sendo interpretada pela atriz britânica Emma Corrin, nas últimas temporadas da premiada série The crown – Kristen Stewart encarna uma versão mais intensa dessa personagem do que já vimos anteriormente. Conhecida por deixar escapar suas emoções e interesse pelo público, Diana conquistou uma legião de fãs pelo mundo e esse seu comportamento também ganha espaço no longa, o que contribui para uma fusão entre a figura histórica e a criada pela atriz. A timidez e os trejeitos que caracterizam a imagem associada a Lady Di, além de sua voz quase sempre sussurrada, também aparecem, como se revelassem mais sobre a intimidade dessa figura real.

A escolha de uma norte-americana para interpretar uma personalidade britânica de sucesso poderia gerar mais cobrança em torno do filme. A participação de Kristen no elenco, porém, vem arrancando muitos elogios da crítica e do público, a exemplo da exibição durante a 78ª edição do Festival de Cinema de Veneza, em 2021, quando foi bastante aplaudido. Mas, além da visível entrega à construção de sua Princesa Diana, Stewart agrega também uma espécie de “toque de gênio metalinguístico”, como bem definiu o repórter Kyle Buchanan, do jornal New York Times, a Spencer. Tal qual Lady Di, a atriz já enfrentou perseguições de paparazzis ao longo de sua carreira. Numa época mais recente que a princesa, a intérprete de Bella Swan na saga Crepúsculo, um dos ícones da cultura pop dos anos 2000, também já teve sua privacidade fortemente invadida pela imprensa por conta de sua vida pessoal.

Na composição do filme, os sentimentos e as sensações experimentadas pela protagonista dão o tom do tratamento das imagens – entre o onírico e o real – mas também fazem parte das escolhas da trilha sonora, que é assinada pelo músico Jonny Greenwood, integrante da banda britânica Radiohead. Diversas vezes, como se coreografassem, as câmeras acompanham os movimentos da protagonista, revelando sobre sua relação com o ballet, que aparece em algumas cenas, mas também servindo de metáfora à liberdade em meio aos limites do palácio. Os desejos, as angústias, os sonhos e os receios da protagonista servem de material ao roteiro e à própria cenografia, que fica entre o fiel à realidade e a criação. No longa, outro aspecto marcante é a temporalidade, que constantemente é posta em questão, devido às camadas de memórias e narrativas paralelas que se sobrepõem. Por vezes, não se sabe se determinado momento seria um pensamento, faria parte da realidade daquela personagem ou se tratam de suas lembranças.

O caráter sensorial que prevalece em Spencer faz parte de toda a linguagem do longa, de tal modo, que alguns dos fatos que outrora estamparam os noticiários nos anos 1990 ganham contornos menos ligados à realidade e, portanto, são contados de maneira mais humanizada. Em Spencer, os fragmentos da vida de Lady Di não são apresentados com o comum distanciamento que as figuras históricas costumam receber. Na maneira com que são narrados, as lágrimas, os abraços e os afetos, que ficam do lado de dentro dos muros do palácio, é que reluzem, dando lugar a quem poderia ser em sua intimidade. Desta vez, embora se trate de uma “fábula de uma tragédia real”, como promete nos primeiros minutos do filme, seria como se pudéssemos não somente assistir a uma história sendo contada, mas mergulhássemos junto com ela nas dores e nas delícias de ser o que se é.

ÉRIKA MUNIZ, é jornalista com graduação em Letras.

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