Curtas

Sangue: vidas e lutas quilombolas em defesa do rio

Documentário de Débora Britto narra a batalha da Ilha de Mercês, que resiste aos impactos gerados pelo Porto de Suape, no Litoral Sul de Pernambuco

TEXTO Mayara Moreira Melo

27 de Abril de 2023

'Sangue' apresenta luta e sobrevivência da comunidade quilombola cercada pelo Complexo Industrial Portuário de Suape

'Sangue' apresenta luta e sobrevivência da comunidade quilombola cercada pelo Complexo Industrial Portuário de Suape

Foto PH Silva/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

A cidade de Ipojuca é composta por 72 engenhos, onde hoje vivem dezenas de comunidades tradicionais que, ao longo de quatro décadas, vêm perdendo sua qualidade de vida, sua fonte de renda e suas terras devido ao avanço do Complexo Industrial Portuário de Suape. A Ilha de Mercês vive um caso especial: atrás do seu terrotório, encontra-se a refinaria de petróleo e à sua frente, o Estaleiro Atlântico Sul. A comunidade está geograficamente cercada por este que costuma ser nomeado como um dos maiores projetos de desenvolvimento econômico do país.

Desenvolvimento para quem? É justamente esse um dos principais questionamentos que motivou o documentário Sangue: Vidas e lutas quilombolas em defesa do rio, feito pela jornalista Débora Britto, a convite do Fórum Suape Espaço Socioambiental. Realizado entre 2020 e 2021 e lançado este mês, no Youtube, o trabalho se debruça sobre as ilegalidades, ameaças de expulsão dos moradores de seus territórios e destruição de ecossistemas comandados pelo projeto, por meio da narrativa de memórias do povo que hoje se identifica e se reconhece como quilombola.

Além da Ilha de Mercês, mais de 20 comunidades foram e são atingidas pelo complexo industrial. A manipulação artificial na natureza, a mudança no fluxo da maré e o extermínio de espécies como sururus, caranguejos e crustáceos ameaçam a segurança e a soberania alimentar dessas pessoas que sobrevivem nessas terras há gerações. A administração do Complexo Portuário de Suape adentrou o espaço com a ideia de segregar o território e determinar que os moradores ali eram invasores, argumento que tornou possível a retirada de uma parte das pessoas do lugar, com indenizações irrisórias, enquanto outras permanecem na resistência. Um drama, aliás, que faz lembrar a história de Piedade (2019), longa de ficção de Cláudio Assis. 

A diretora Débora Britto conta que teve seu primeiro contato com a comunidade em 2018, através de visitas ao território para a elaboração da reportagem especial Suape pelo avesso, que estava desenvolvendo quando era repórter da Marco Zero Conteúdo. “Convivi e conheci diversos polos e núcleos de comunidades tradicionais do território de Suape e o quilombo Ilha de Mercês era um deles. É uma comunidade que tem uma especificidade bem importante, pois eles tiveram território perdido”, conta a documentarista.

Madalena Martins, conhecida como Dona Madal, matriarca da família Martins, é habitante da Ilha de Mercês. Imagem: PH Silva/Divulgação

As lembranças das histórias contadas pelos antepassados da comunidade e a presença de um baobá são traços marcantes para identificar a origem das pessoas que hoje vivem nesse território. Trazida d'África, a árvore se popularizou no Brasil graças à perspicácia das africanas escravizadas, ao carregarem as sementes da espécie em suas tranças para plantar junto às senzalas. Uma forma de resgatar a identidade e afetividade de sua terra natal.

Por conta dessa ancestralidade, a ilha que foi reconhecida como comunidade remanescente de quilombo há quatro anos e tem em Sangue um importante registro da sua oralidade, memória e ancestralidade, que abraçam o sentimento de pertencimento e das relações afetivas profundas e históricas entre as pessoas e o lugar onde moram. "Minha mãe disse uma vez, para mim, que era bom que um dia aparecesse uma prova que isso aqui tinha parte com  escravidão. Eu perguntava porque ela dizia isso, e ela falava que era porque a mãe dela dizia que onde tivesse baobá, tinha parte com qualquer coisa de escravo. Ela disse que as escravas botava umas sementes desse baobá no cabelo", relata Dona Madal na entrevista ao filme. 

No documentário, é possível perceber a necessidade em resgatar, afirmar e repassar a história desses quilombolas. Apesar disso, Débora Britto afirma que, ao longo das filmagens, frequentemente apareciam falas dos moradores quanto a não ter o que falar ou colaborar, ao não perceber a relevância da própria história e experiência. “Eu sentava pra tentar conversar com a matriarca, por exemplo, e foi um processo em construção, ela muitas vezes não topava falar comigo, sentia que não tinha alguma coisa a contribuir para a luta da comunidade, para afirmar a identidade quilombola e pra chegar no ponto da gente gravar o documentário. Apesar da relutância a princípio, ela se soltou e topou cantar o coco, que era uma coisa da infância dela e que foi se perdendo na própria comunidade.”

O documentário foi exibido pela primeira vez, presencialmente, na Ilha de Mercês em 2021, como uma forma de enaltecer as pessoas que protagonizam essa narrativa e suas falas. “Nosso objetivo é que esse documentário seja um instrumento de fortalecimento da própria comunidade Ilha de Mercês e de outras comunidades tradicionais, que eles possam viver do mangue, da pescaria e do que mais desejarem, essencialmente viver com tranquilidade no local que é deles e delas”, complementa a diretora.

O filme é um exemplo de como fazer da comunicação uma ferramenta de registro da memória junto à própria comunidade, no propósito de garantir a eles dignidade, qualidade de vida e permanência no local onde nasceram.

Assista ao filme aqui:



MAYARA MOREIRA MELO é jornalista em formação pela Unicap e estagiária da Continente.

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