Dessa forma, Ligiana e Sofia foram de Krenak a Mancuso, passando especialmente pelo livro Metamorfoses, de Emanuele Coccia, inspiração principal na tessitura do álbum-espetáculo. “Construímos a dramaturgia em episódios de metamorfoses. À energia vital que vive em todos seres vivos da Terra, demos o nome de ‘Sá’ e acompanhamos ela se metamorfoseando em pássaro, peixe, mulher, pedra… Eu tenho dito que, para mim, nenhum ser vivo merece mais uma canção de amor que a Terra”, comenta a autora do espetáculo.
A mensagem da obra de Coccia é: “Somos uma única e mesma vida”. Não se trata de achismos ou devaneios místicos: essa interpretação da biologia e do universo está ancorada na cosmologia introduzida por Carl Sagan em Cosmos (1980). O autor italiano, aliás, chega à mesma conclusão a partir de observações filosóficas e poéticas, em especial sobre as borboletas.
No sentido de contar a história da vida a partir da ideia de um único elemento, a utilização de um coral de vozes é potencializada enquanto artifício narrativo. Ao todo, são 30 vozes compondo um oratório comandado por Ligiana Costa. Este, porém, não foi seu único local de desafio: em Eva, a artista comandou um coro num álbum puramente vocal. Desta vez, em Sá, ela permite a inserção de elementos sonoros eletrônicos, o que representa a experimentação técnica com relação ao seu trabalho anterior.
Para Sá, a artista resgatou os cantores do Coral Jovem do Estado de São Paulo, que já trabalharam em Eva, sob a regência de Tiago Pinheiro, além dos próprios produtores Dan Maia e Gilberto Monte, que neste álbum também canta. Os arranjos corais são de Xavier Bartaburu.
Cena do espetáculo Sá, um oratório para a Terra. Foto: Alexandre Rodrigues/Divulgação
“Tem muito de oração, para a Terra e para nós, filhas e filhos de Eva. Os arranjos dialogam muito com os universos que me interessam, sou uma artista que gosta de transitar entre o popular e o erudito. Curiosamente, as três peças que canto basicamente sozinha com o coro são de fato orações: Unum eu compus para Letieres Leite, quando ele se metamorfoseou. Kamara Kasana é composta a partir de um poema da poeta macuxi Sony Ferseck, sobre perdas e metamorfoses. Em Sá, o coro final, é um mini réquiem para a Terra”, explica Ligiana.
A oração é meio de fácil acesso para a artista. O gênero oratório surge em concomitância à ópera no século XVII, objeto de estudo e trabalho de Ligiana Costa enquanto musicóloga. Seu objetivo com Sá é, justamente, deslocar para a Terra o local de reflexão e meditação. “Se, na ópera, as fontes são os mitos, os textos dramáticos, a literatura profana; nos oratórios, são as escrituras sagradas. Transformar a Terra em escritura sagrada, digna de um oratório, me parecia mais que justo”, completa.
NA VOZ E NO CORPO
Enquanto Ligiana e seu coral focam na performance musical, a responsável por dar vida à natureza interpretando Gaia, a segunda divindade primordial grega, é Maura Baiocchi. Ela é autora, encenadora, coreógrafa e performer brasileira, criadora de uma abordagem chamada taanteatro, um teatro coreográfico de tensões, e diretora-fundadora da Taanteatro Companhia. A junção dessas habilidades resulta num espetáculo fluído e cadenciado, no qual os olhos seguem os longos e flutuantes cabelos da performer enquanto os ouvidos são guiados pelas mãos e pés da cantora.
“Quando o trabalho começou a ganhar forma, eu pensei na Maura Baiocchi. Pensei em tê-la na capa e no espetáculo. Maura vem se dedicando à ecoperformance, tudo a ver com Sá. A natureza é divindade – múltiplas divindades, inclusive. Quando cultuamos Yemanjá, Oxumaré ou Ossain, estamos cultuando a Terra, não? Mas precisamos ir além do culto espiritual, já passou da hora da ação... Não existe planeta B para nós e para os outros seres vivos da Terra”, conclama Ligiana.
Extra:
Assista ao espetáculo na íntegra e com exclusividade aqui
AUGUSTO TENÓRIO é jornalista. Já trabalhou para veículos como a Continente, o Jornal do Commercio, o Estadão e, hoje, cobre o Congresso Nacional pelo portal Metrópoles, em Brasília.