Sá, um oratório para a Terra
A cantora, compositora e musicóloga Ligiana Costa, com especialidade em ópera do século XVII, disponibiliza seu novo álbum em plataformas de ‘streaming’ e o espetáculo aqui, na Continente Online
TEXTO Augusto Tenório
08 de Maio de 2023
Foto Soraia Costa/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Mais que um disco, Sá, um oratório para a Terra (2022) se apresenta como um álbum-espetáculo responsável por contar a história da própria vida de maneira ambivalente. Primeiro, com relação à forma, ao encontrar um fim tanto como trabalho musical quanto como dramaturgia. Depois, com relação ao conteúdo, ao transmitir discursos a dois interlocutores: nós – avisando que não estamos alheios ou acima da natureza – e a própria natureza – neste caso, com intuito de restaurar seu papel de divindade, rebaixado pela cultura ocidental.
O espetáculo foi realizado em outubro do ano passado, no Theatro São Pedro, em São Paulo, e agora pode ser visto no Youtube. Como álbum, o novo trabalho de Ligiana Costa, cantora, compositora e musicóloga com especialidade em ópera do século XVII, pode ser apreciado nas principais plataformas de streaming.
A escolha por apresentar Sá no formato de álbum-espetáculo oferece uma continuidade à jornada musical iniciada em Eva (2020), trabalho anterior de Ligiana que versa sobre ecofeminismo. “Depois de Eva, pensei em fazer um trabalho com uma narrativa; comecei com uma ideia de contar a história de minha avó Ligia. Chamei para trabalhar comigo a atriz e dramaturga Sofia Boito. Ficamos muitos dias no alto de uma montanha tentando pensar numa estrutura, numa poética. De cara, percebemos que falar da Terra era falar de todas as avós, da nossa avó em comum, daquela de onde viemos e para onde sempre voltaremos”, conta Ligiana Costa à Continente.
Dessa forma, Ligiana e Sofia foram de Krenak a Mancuso, passando especialmente pelo livro Metamorfoses, de Emanuele Coccia, inspiração principal na tessitura do álbum-espetáculo. “Construímos a dramaturgia em episódios de metamorfoses. À energia vital que vive em todos seres vivos da Terra, demos o nome de ‘Sá’ e acompanhamos ela se metamorfoseando em pássaro, peixe, mulher, pedra… Eu tenho dito que, para mim, nenhum ser vivo merece mais uma canção de amor que a Terra”, comenta a autora do espetáculo.
A mensagem da obra de Coccia é: “Somos uma única e mesma vida”. Não se trata de achismos ou devaneios místicos: essa interpretação da biologia e do universo está ancorada na cosmologia introduzida por Carl Sagan em Cosmos (1980). O autor italiano, aliás, chega à mesma conclusão a partir de observações filosóficas e poéticas, em especial sobre as borboletas.
No sentido de contar a história da vida a partir da ideia de um único elemento, a utilização de um coral de vozes é potencializada enquanto artifício narrativo. Ao todo, são 30 vozes compondo um oratório comandado por Ligiana Costa. Este, porém, não foi seu único local de desafio: em Eva, a artista comandou um coro num álbum puramente vocal. Desta vez, em Sá, ela permite a inserção de elementos sonoros eletrônicos, o que representa a experimentação técnica com relação ao seu trabalho anterior.
Para Sá, a artista resgatou os cantores do Coral Jovem do Estado de São Paulo, que já trabalharam em Eva, sob a regência de Tiago Pinheiro, além dos próprios produtores Dan Maia e Gilberto Monte, que neste álbum também canta. Os arranjos corais são de Xavier Bartaburu.
Cena do espetáculo Sá, um oratório para a Terra. Foto: Alexandre Rodrigues/Divulgação
“Tem muito de oração, para a Terra e para nós, filhas e filhos de Eva. Os arranjos dialogam muito com os universos que me interessam, sou uma artista que gosta de transitar entre o popular e o erudito. Curiosamente, as três peças que canto basicamente sozinha com o coro são de fato orações: Unum eu compus para Letieres Leite, quando ele se metamorfoseou. Kamara Kasana é composta a partir de um poema da poeta macuxi Sony Ferseck, sobre perdas e metamorfoses. Em Sá, o coro final, é um mini réquiem para a Terra”, explica Ligiana.
A oração é meio de fácil acesso para a artista. O gênero oratório surge em concomitância à ópera no século XVII, objeto de estudo e trabalho de Ligiana Costa enquanto musicóloga. Seu objetivo com Sá é, justamente, deslocar para a Terra o local de reflexão e meditação. “Se, na ópera, as fontes são os mitos, os textos dramáticos, a literatura profana; nos oratórios, são as escrituras sagradas. Transformar a Terra em escritura sagrada, digna de um oratório, me parecia mais que justo”, completa.
NA VOZ E NO CORPO
Enquanto Ligiana e seu coral focam na performance musical, a responsável por dar vida à natureza interpretando Gaia, a segunda divindade primordial grega, é Maura Baiocchi. Ela é autora, encenadora, coreógrafa e performer brasileira, criadora de uma abordagem chamada taanteatro, um teatro coreográfico de tensões, e diretora-fundadora da Taanteatro Companhia. A junção dessas habilidades resulta num espetáculo fluído e cadenciado, no qual os olhos seguem os longos e flutuantes cabelos da performer enquanto os ouvidos são guiados pelas mãos e pés da cantora.
“Quando o trabalho começou a ganhar forma, eu pensei na Maura Baiocchi. Pensei em tê-la na capa e no espetáculo. Maura vem se dedicando à ecoperformance, tudo a ver com Sá. A natureza é divindade – múltiplas divindades, inclusive. Quando cultuamos Yemanjá, Oxumaré ou Ossain, estamos cultuando a Terra, não? Mas precisamos ir além do culto espiritual, já passou da hora da ação... Não existe planeta B para nós e para os outros seres vivos da Terra”, conclama Ligiana.
Extra:
Assista ao espetáculo na íntegra e com exclusividade aqui
AUGUSTO TENÓRIO é jornalista. Já trabalhou para veículos como a Continente, o Jornal do Commercio, o Estadão e, hoje, cobre o Congresso Nacional pelo portal Metrópoles, em Brasília.