Mas vale lembrar: essas questões urgentes são velhas conhecidas e certamente continuarão sendo até que tais descompassos históricos sejam equiparados. Não se pode medir o quanto a arte incorporou essas discussões ou as pautou na esfera pública, mas talvez o que se possa dizer é, há muito tempo, ela tem tido um papel fundamental na visibilização de populações injustiçadas. No entanto, uma movimentação mais recente é justamente a adesão dessas pautas pelas instituições culturais, que, no caso do Itaú Cultural, busca colocá-las em seu discurso e prática. Um exemplo disso é a Caminhada Rumos-Escuta, uma iniciativa de articulação com agentes culturais das capitais de estados que costumavam ter baixo número de inscrições, descentralizando o programa dos estados economicamente dominantes. Neste caso, a maioria das capitais abarcadas estam localizadas especialmente na região Norte, como em Roraima, Rondônia e Tocantins, que aprovaram o total de apenas um projeto cada, mas também no Nordeste (Alagoas, com um projeto aprovado, e Sergipe, com dois contemplados).
O diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron, afirma que ainda não é possível mensurar a eficácia dessa estratégia de descentralização, mas que a Rumos-Escuta terá continuidade e aperfeiçoamento. Há alguns problemas na articulação, como seu centramento nas capitais e o curto tempo de “escuta” (dois meses), além do próprio teto orçamentário do edital para essa ampliação geográfica. Estados como Pernambuco, Ceará e Bahia já têm por costume um número maior de inscritos, portanto à parte desta iniciativa.
Pernambuco, por exemplo, inscreveu 576 projetos e teve um total de nove aprovados, o que equivale a 8,26% do programa, estatística que eleva à das inscrições, que eram 4,57% do número total de inscritos. Entre os pernambucanos, a diversidade também se fez presente: o espetáculo Palhaço surddy, do ator surdo Igor Rocha, proposição que também realiza capacitação e difusão da Libras, é um dos selecionados. Outra novidade do edital este ano foi a implementação de recursos de acessibilidade para as inscrições. Nesse sentido, como ressaltado por Eduardo Saron, o posicionamento do Rumos não é apenas acessibilizar as produções, mas colocar esses sujeitos enquanto produtores de sua própria fala, não apenas como “objetos” da produção artística.
Outra ação contemplada foi a digitalização, devolução e difusão de parte do acervo videográfico da ONG Vídeo nas Aldeias, que atua em Pernambuco, desde 1987, na formação de cineastas indígenas. O projeto Yãkwá, imagem e memória refere-se à cerimônia realizada pelo grupo indígena de mesmo nome, reconhecida como patrimônio cultural nacional e patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco. Entre os selecionados de Pernambuco, há ainda três projetos relacionados à cultura popular: Pífanos: do mapeamento à salvaguarda, O mamulengo brasileiro vai entrando e toma assento e Mulheres fortalecendo raízes da cultura popular. Este último compreende ações de empoderamento das mulheres do Maracatu Feminino Coração Nazareno, com seminários e oficinas, tratando também da restauração de indumentárias do maracatu. No campo da criação artística, o documentário Como construir uma casa, da Carnaval Filmes, traz a narrativa de oito artistas que não vivem em seus lugares de origem por diversas razões, entre motivos políticos, religiosos ou até mesmo conflitos bélicos.
Em um governo que já teve início com a tentativa de desmonte do Ministério da Cultura, editais privados, como o Rumos, têm sido um dos meios de sustentação para a produção de muitos artistas nesse conjuntura crítica. “Poder olhar, hoje, para esses artistas do Brasil e ver o que eles estão pensando, sentindo e realizando nesse momento de uma crise terrível, de retrocesso e de perda de direitos, e mais ainda, de ataques tão direcionados à cultura e aos artistas do Brasil. Muitos dos projetos que a gente escolheu trouxeram uma resposta muito contunde a esse cenário, ou então não trouxeram respostas, mas trouxeram perguntas. Como é que a gente vai seguir? Como é que a gente vai resistir?”, reflete a cineasta Paula Gomes, integrante da comissão de seleção, sobre o processo de escolha.