Curtas

Relacionamento em tempo de confinamento

‘A nuvem rosa’, longa de estreia de Iuli Gerbase em competição no Sundance Festival, foi feito antes da pandemia, mas prevê situações que viraram reais, sobretudo para mulheres

TEXTO Mariane Morisawa

02 de Fevereiro de 2021

Cena do filme 'A nuvem rosa', feito antes da pandemia

Cena do filme 'A nuvem rosa', feito antes da pandemia

Foto Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Uma nuvem de cor rosa paira sobre o mundo, matando quem for exposto em 10 segundos e obrigando todos a ficarem confinados em casa. Parece coisa saída da realidade, mas foi concebida como ficção científica por Iuli Gerbase. Por isso, logo no início de A nuvem rosa, longa de estreia da cineasta gaúcha que é exibido na Competição Mundial no Sundance Festival (veja aqui), um letreiro avisa que o filme foi escrito em 2017 e filmado em 2019.

“Foi muito surreal. Parecia aquelas comédias que a pessoa escreve e vira realidade”, disse Gerbase em entrevista à Continente. “Nunca esperava que ia viver meu filme, que algumas coisas se tornariam realidade. As pessoas da equipe ficavam me dizendo em mensagens que eu previa o futuro”, contou.

Como em quase todo filme com elementos de gênero, a tal nuvem rosa é um pretexto para tratar de outra coisa. Na noite anterior à chegada do misterioso elemento, Giovana (Renata de Lélis) e Yago (Eduardo Mendonça) tinham se conhecido numa festa e passado a noite juntos. Por conta do confinamento forçado, os dois são obrigados a morarem juntos no confortável apartamento da mãe dela. “A ideia era ver os conflitos que surgem das diferenças”, disse Gerbase. Giovana e Yago não têm expectativas iguais, nem os mesmos planos de futuro. Ele quer ter filhos; ela não, por exemplo. Suas prioridades não são as mesmas. Os conflitos surgem. Há distanciamentos e uniões nessa convivência forçada. “É um filme que tem um aspecto de ficção científica, mas é um drama de relacionamento”, contou a diretora.

O elemento novo, mesmo sendo fantasioso, serve para explorar a adaptação e a reação de seres humanos a essa situação. Muitas coisas viraram realidade, como as aulas online do filho que Giovana e Yago acabam tendo, ou os aniversários virtuais. “Eu e os atores até brincamos que tivemos o treinamento que ninguém teve em 2019”, contou Iuli Gerbase. “Mas acho que não adiantou muito, porque, passado um mês de pandemia, também ficamos ansiosos. Não adiantou muito o nosso treinamento.”

Como muitas mulheres estão sentindo na vida real, o confinamento pesa mais em Giovana, por vários motivos. Não que Yago seja um carrasco, ou um folgado, mas a cor rosa da nuvem não é uma escolha aleatória. Ela significa a expectativa que a sociedade tem da mulher. Giovana acaba sendo induzida pela Nuvem Rosa a seguir os passos mais tradicionais, algo que ela não desejava para sua vida. O filme desconstrói a narrativa de que toda mulher quer ser mãe, ou nasceu para ser mãe, ou gosta o tempo todo de ser mãe.

A perspectiva feminina está em alta finalmente no cinema, graças também a um número crescente de mulheres atrás da câmera. Em Sundance, 50% da seleção foi dirigida por pelo menos uma mulher. “É meu primeiro longa, foi uma surpresa enorme entrar”, disse Iuli Gerbase, que, como o sobrenome indica, é filha do cineasta Carlos Gerbase, que assinou Tolerância e Sal de prata, e de Luciana Tomasi, produtora de O homem que copiava, Meu tio matou um cara e outros. Mas, pequena, Iuli queria mesmo era ser escritora. Ela costumava escrever contos e fazer um desenho para acompanhá-los. Quando decidiu ser cineasta, a reação dos pais foi de “socorro, mais uma”. “Eles sabem que não é fácil, que precisa gostar muito. Mas estão felizes com Sundance.” É uma estreia em alto estilo.



MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.

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