Como em quase todo filme com elementos de gênero, a tal nuvem rosa é um pretexto para tratar de outra coisa. Na noite anterior à chegada do misterioso elemento, Giovana (Renata de Lélis) e Yago (Eduardo Mendonça) tinham se conhecido numa festa e passado a noite juntos. Por conta do confinamento forçado, os dois são obrigados a morarem juntos no confortável apartamento da mãe dela. “A ideia era ver os conflitos que surgem das diferenças”, disse Gerbase. Giovana e Yago não têm expectativas iguais, nem os mesmos planos de futuro. Ele quer ter filhos; ela não, por exemplo. Suas prioridades não são as mesmas. Os conflitos surgem. Há distanciamentos e uniões nessa convivência forçada. “É um filme que tem um aspecto de ficção científica, mas é um drama de relacionamento”, contou a diretora.
O elemento novo, mesmo sendo fantasioso, serve para explorar a adaptação e a reação de seres humanos a essa situação. Muitas coisas viraram realidade, como as aulas online do filho que Giovana e Yago acabam tendo, ou os aniversários virtuais. “Eu e os atores até brincamos que tivemos o treinamento que ninguém teve em 2019”, contou Iuli Gerbase. “Mas acho que não adiantou muito, porque, passado um mês de pandemia, também ficamos ansiosos. Não adiantou muito o nosso treinamento.”
Como muitas mulheres estão sentindo na vida real, o confinamento pesa mais em Giovana, por vários motivos. Não que Yago seja um carrasco, ou um folgado, mas a cor rosa da nuvem não é uma escolha aleatória. Ela significa a expectativa que a sociedade tem da mulher. Giovana acaba sendo induzida pela Nuvem Rosa a seguir os passos mais tradicionais, algo que ela não desejava para sua vida. O filme desconstrói a narrativa de que toda mulher quer ser mãe, ou nasceu para ser mãe, ou gosta o tempo todo de ser mãe.
A perspectiva feminina está em alta finalmente no cinema, graças também a um número crescente de mulheres atrás da câmera. Em Sundance, 50% da seleção foi dirigida por pelo menos uma mulher. “É meu primeiro longa, foi uma surpresa enorme entrar”, disse Iuli Gerbase, que, como o sobrenome indica, é filha do cineasta Carlos Gerbase, que assinou Tolerância e Sal de prata, e de Luciana Tomasi, produtora de O homem que copiava, Meu tio matou um cara e outros. Mas, pequena, Iuli queria mesmo era ser escritora. Ela costumava escrever contos e fazer um desenho para acompanhá-los. Quando decidiu ser cineasta, a reação dos pais foi de “socorro, mais uma”. “Eles sabem que não é fácil, que precisa gostar muito. Mas estão felizes com Sundance.” É uma estreia em alto estilo.
MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater, em Hollywood, e cobre festivais.