Recurso final
A gênese da Operação Ouvidos Moucos, a investigação da Polícia Federal que levou ao suicídio de um reitor em Santa Catarina
TEXTO Paulo Cezar Soares
01 de Abril de 2022
No livro-reportagem, Markun apresenta as falhas da operação que terminou levando Luiz Carlos Cancellier a tirar sua própria vida
Imagem Vitorino Coragem/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 256 | abril de 2022]
Manhã de 14 de setembro de 2017. Diversas equipes da Polícia Federal deixam a sede da PF em Florianópolis. Uma delas seguiu para a residência de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cau, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), investigado pela Operação Ouvidos Moucos, num suposto desvio de verbas endereçadas ao programa de ensino a distância da universidade (80 milhões de reais). Sublinhe-se que o fato foi anterior à sua gestão, função que assumiu pouco mais de um ano antes de fazer parte da lista dos investigados.
Os policiais foram à casa do reitor e apreenderam um celular, um iPad e, sem dar maiores explicações, o levaram para o Complexo Penitenciário Agronômica, onde se juntou com outros seis funcionários da universidade e foi informado do motivo da prisão. Permaneceu preso por 30 horas. Foi solto mediante um habeas corpus, mas proibido de entrar na universidade, que sempre foi a extensão da sua vida.
Num misto de inconformismo e revolta com a proibição de entrar na universidade, o reitor publicou um artigo no jornal O Globo, com o título Reitor exilado. No texto, afirmava: “a humilhação e o vexame a que fomos submetidos – eu e os outros colegas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) não tem precedentes na história da instituição. Nos últimos dias, tivemos nossas vidas devassadas e nossa honra associada a uma ‘quadrilha’ acusada de desviar R$ 80 milhões. E fomos impedidos, mesmo após libertados, de entrar na universidade”.
Ressaltava, ainda: “a fragilidade das acusações, num processo baseado em depoimentos que não permitiram o contraditório e a ampla defesa, informações seletivas passadas à PF, sonegação de informações fundamentais ao pleno entendimento do que se passava, e a atribuição a uma gestão que recém-completou um ano, de denúncias relativas ao período anterior. Não adotamos qualquer atitude para abafar ou obstruir a aplicação da denúncia”.
De acordo com a versão da Polícia Federal, a Operação Ouvidos Moucos, conduzida pela delegada federal Érika Mialik Marena, é uma referência à desobediência reiterada da administração da universidade aos pedidos e recomendações dos órgãos de fiscalização e controle. A proibição de entrar na universidade causou ao reitor um forte abalo emocional. Sentiu-se, além de injustiçado com a prisão, humilhado. Terminou tirando sua própria vida em outubro de 2017. A polícia encontrou, no bolso da sua calça, a carteira de habilitação e um bilhete: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!”.
No livro Recurso final – A investigação da Polícia Federal que levou ao suicídio de um reitor em Santa Catarina, o jornalista Paulo Markun desvenda os bastidores dos desvios ocorridos na UFSC e os desdobramentos da operação da PF. “A ideia do livro surgiu um ano depois do suicídio do reitor, a partir de uma conversa com outro escritor e jornalista, Ernesto Rodrigues, que lembrou do caso num momento que buscava tema para um novo livro”, conta. “Vivi anos em Florianópolis e conheci superficialmente o reitor. Achei que o assunto merecia uma investigação mais aprofundada e consultei a Editora Objetiva, que se dispôs a apoiar o projeto”, comenta Markun, que é autor de 13 livros.
Ele ressalta que o livro foi a oportunidade de investigar o caso, pois a imprensa o abordou superficialmente. Profissional experiente, com passagens por importantes redações, sobretudo de TV, Markun apresentou durante mais de 10 anos o programa Roda Viva e foi presidente da Fundação Padre Anchieta. Ele traça o perfil do reitor desde sua juventude, analisa documentos oficiais – como os da Controladoria-Geral da União, do Tribunal de Contas da União, da Polícia Federal e da Corregedoria da UFSC–, a cobertura da imprensa, e entrevista familiares e amigos do reitor, além de autoridades. O trabalho de pesquisa resultou em mais de 20 mil páginas de documentos, depoimentos, inquéritos e transcrição de entrevistas (foram cerca de 50 entrevistados).
Segundo o autor, “80 milhões de reais é todo o dinheiro que a universidade recebeu pelo ensino a distância em 16 anos”. E lembra que, “antes de chegar às manchetes, os tais 80 milhões de reais tinham aparecido na página do Facebook da Polícia Federal, acompanhada por mais de 2,8 milhões de pessoas”.
Desde o advento da Operação Lava Jato, sob o guarda-chuva do combate à corrupção, diversas pessoas foram acusadas injustamente e, às vezes, presas sem provas cabais, não raro, em operações com caráter midiático, num flagrante desrespeito aos mais elementares postulados democráticos. O reitor Cancellier, submetido a humilhações desnecessárias, foi mais uma das muitas vítimas de um período nebuloso da história do país. Infelizmente, no seu caso, foi fatal.
Um dia antes da sua morte, Luiz Carlos Cancellier saiu de casa sozinho e foi ao mesmo shopping assistir ao filme Polícia Federal – A lei é para todos, que conta a história da Lava Jato. A atriz Flávia Alessandra interpreta a personagem Bia, inspirada na delegada da força-tarefa Érika Mialik Marena. “A mesma que foi algoz, carrasco, juíza e executora do meu irmão”, afirma Acioli Cancellier.
Numa recente entrevista a respeito do livro, o autor fez uma analogia do que ocorreu com o reitor, com o episódio do caso Escola Base, em março de 1994, no Bairro Aclimatação, região centro-sul de São Paulo, quando os proprietários, o motorista do transporte escolar e um casal de pais foram acusados por duas mães de abuso sexual. O fato foi explorado de forma sensacionalista pela imprensa. No final, ficou provada a inocência dos acusados. No caso do reitor, o inquérito foi encerrado sem provas pela Polícia Federal.
“Enfim, se há um objetivo neste livro é o de tentar compreender melhor como, a partir de uma investigação previamente delineada, que buscava localizar na UFSC o mesmo modus operandi empregado em casos investigados nas universidades federais do Paraná e no Rio Grande do Sul, um cidadão brasileiro foi incriminado de forma desproporcional e condenado a priori, sem direito à defesa, num episódio que culminou no seu suicídio e na revalorização (tardia, para ele) de um princípio elementar do direito, inscrito na Constituição: ‘Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ (Inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988)”, explica Markun.
PAULO CEZAR SOARES é jornalista.