Recife, Nantes e Hamburgo são cidades portuárias que já desempenharam papéis centrais para seus países, mas perderam importância econômica por causa de mudanças nas hierarquias econômicas de mercado e nas rotas comerciais internacionais. No século XXI, procuram se reinventar como centros relativamente periféricos, enquanto ainda preservam uma herança cultural cosmopolita herdada dos tempos áureos e atualmente renovada por eferverscências artísticas pulsantes cheias de originalidade, criatividade e inovação. Graças a um novo intercâmbio entre França, Alemanha e Brasil, a arte do pernambucano Paulo Bruscky apontará reflexões sobre essas condições e transformações a partir de uma exposição do artista a ser apresentada nessas três cidades.
Durante 10 dias deste mês, os curadores Jean-Michel Bouhours (de Paris) e Gabriel Montua (de Berlim) mergulharam no ateliê de Bruscky, no centro do Recife, com a missão de pesquisar seu acervo pessoal e desenvolver as primeiras bases temáticas para a elaboração da exposição, cujo projeto definitivo deve ser apresentado em fevereiro. Durante o período, procuraram compreender melhor também as dinâmicas do ambiente cultural recifense para observar possíveis elos conceituais que entrelacem a obra do artista à proposta de conexão entre os três países.
“Essa foi minha primeira experiência de residência curatorial como metodologia”, diz Bouhours. Para o curador, “conhecer o acervo e também o jeito como Paulo vive foi importante para perceber como ele relaciona diretamente sua arte e sua vida. Nossa intenção é apresentar a obra de Bruscky não a partir de um olhar europeu, mas da própria posição do Recife enquanto cidade na implicação urbana em que ele está situado no campo social”.
Bouhours, Bruscky e Montua no ateliê do artista, no Recife. Foto: Quentin Marques/Divulgação
Para exemplificar alguns interesses do projeto, o curador cita um trabalho de Bruscky chamado AlimentAÇÃO. É uma série de quatro fotografias em que ele parece cortar a carne e a pele do próprio corpo para comer a si mesmo. Nessa peça, Bouhours identifica relações com o Manifesto Antropofágico (e o Tropicalismo); com o Canibalismo de outono, de Salvador Dalí; com a body art de Marina Abramovic; com os ready-made de Marcel Duchamp; com a poesia concreta (em referência ao jogo de letras e palavras); e com o acionismo de Gina Pane.
Para Bouhours, “as obras de Paulo Bruscky não fazem cópia ou adaptação, mas nascem de um cruzamento de influências e referências para ganhar a originalidade”. Na associação com o Manifesto Antropofágico, o curador percebe que o artista “não rejeita o colonizador e alimenta-se dele em gestos de comer, regurgitar e cuspir uma nova criação”.
Bouhours, que atuou durante 40 anos como curador no Centro Georges Pompidou, em Paris, conheceu Bruscky pessoalmente em maio de 2017, quando esteve no Recife para participar da programação do Fórum do Movimento das Imagens, na Caixa Cultural, organizado pelo artista belga Yann Beauvais. Meses depois, em outubro, em uma sala do Pompidou, montou uma exposição do pernambucano, que, no mesmo ano, havia também participado da grandiosa Bienal de Veneza.
Obra AlimentAÇÃO. Imagem: Reprodução
LINHA CURATORIAL Montua e Bouhours ficaram próximos e sentiram identificação mútua por terem realizado projetos em torno da obra de Salvador Dalí. O curador alemão, que trabalha na Nationalgalerie, em Berlim, elaborou uma tese de doutorado sobre as intervenções do artista surrealista espanhol nas mídias de massa, um procedimento artístico fortemente relacionado à obra de Bruscky.
Segundo Montua, a questão da comunicação de massa será fundamental na elaboração da exposição. Ao longo de sua trajetória, Bruscky sempre se apropriou da linguagem, utlizando cartazes, outdoors, vídeo, cinema, selos postais, cadernos de classificados, xerox, fax e anúncios publicitários em jornais, entre outros veículos, como suporte para suas obras. Por meio de cartas trocadas pelo correio e de trabalhos de arte postal, o artista também manteve um elo com artistas de outros países, o que representa um canal de interlocução entre a arte contemporânea produzida no Recife com outras cidades do mundo. “Nós éramos a internet antes de existir internet, pois já trabalhávamos em rede”, compara Bruscky. Um dos eixos da exposição será a frase “Hoje a arte é este comunicado”, de autoria de Paulo Bruscky, presente em diversos de seus trabalhos. “A arte é um conceito, uma troca de ideias, uma informação e não um objeto físico”, explica o artista.
Os dois curadores pretendem ainda contextualizar a obra de Bruscky na tradição cosmopolita da arte recifense e mostrar que o artista é fruto de um ambiente criativo bastante conectado com vanguardas artísticas internacionais. Essa interligação tem seus primórdios na comitiva de Maurício de Nassau no século XVII, com desdobramentos na atividade de artistas do século XIX (sobretudo fotógrafos, gravadores e arquitetos) e no pioneiro modernismo pernambucano do começo do século XX, que tem Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) como um de seus principais representantes.
Obra de arte correio. Imagem: Reprodução
Direta ou indiretamente, Monteiro deve estar presente no projeto. Bruscky é um dos maiores especialistas em sua obra, que envolve experimentos pioneiros de poesia visual e arte postal, e ambos possuem peças no acervo do Pompidou, além de terem se conhecido pessoalmente.
“Quando a fotografia foi inventada, Recife logo entrou em contato. Dom Pedro II ficou impressionado com a qualidade dos fotógrafos da cidade. A situação portuária também sempre favoreceu a boemia e as reuniões de intelectuais. Recife, depois do Rio de Janeiro, é a cidade que mais possui esculturas públicas de artistas franceses”, resgata Bruscky. Ele ainda lembra que o arquiteto e engenheiro francês Louis Léger Vauthier projetou prédios históricos do Recife, como o Teatro de Santa Isabel e o Mercado de São José, construídos por operários alemães.
De acordo com Gabriel Montua, “na questão comercial, existe uma espécie de simetria entre a Europa e o Recife. A obra de Paulo Bruscky acompanha essa simetria. A ideia é apresentar Bruscky ao público europeu não só como artista individualmente, mas dentro da arte moderna brasileira no contexto nordestino”.
Segundo Gabriel Montua, “foi importante não só conhecer Paulo, mas também compreender aspectos de sua obra relacionados à histórica postura revolucionária que o Recife sempre manteve”. Para o curador alemão, essa preocupação de quebrar o eurocentrismo é também uma tendência nos museus europeus dos últimos 30 anos, iniciada em 1989 com a grande exposição Mágicos da Terra (Pompidou, Paris) e retomada em 2018, por exemplo, pela mostra Hello world (Hamburger Bahnhof, Berlim).
O projeto com Bruscky é viabilizado pelo Fundo Cultural Franco-Alemão e envolve os consulados recifenses dos dois países. A produtora pernambucana Liana Vila Nova, que trabalhou com Bouhours e Beauvais no Fórum do Movimento das Imagens, idealizou e organizou o novo intercâmbio, apresentado à imprensa pernambucana em entrevista coletiva cedida no penúltimo dia da pesquisa. Com um novo recorte, Bouhours e Montua dão continuidade e atualizam as pesquisas sobre a obra e o acervo do artista pernambucano, já investigado com profundidade por críticos como Cristina Freire, Cristiana Tejo, Yuri Bruscky e Adolfo Montejo Navas, que deram origem a livros e exposições panorâmicos e retrospectivos, mas nunca totalmente conclusivos diante de um material tão vasto e inesgotável, sempre em renovação.
JÚLIO CAVANI, jornalista de cultura, crítico e realizador. Dirigiu os curtas Deixem Diana em paz (2013) e História natural (2014). Atualmente, é também curador do festival Animage, no Recife. Escreve sobre artes visuais desde os anos 2000.