Curtas

Os arrombados

A cerâmica e o encontro entre amigos artistas dão liga à exposição de arte contemporânea em cartaz, até dezembro, no ateliê de Christina Machado, no Recife

TEXTO Sofia Lucchesi

25 de Outubro de 2017

Processo de criação durou um ano, em encontros semanais

Processo de criação durou um ano, em encontros semanais

Foto Francisco Baccaro/Divulgação

Dizem por aí que toda obra de arte é um objeto inútil. Fala-se também que, na arte contemporânea, é preciso que o trabalho fuja das funções práticas da vida cotidiana, caso queira se legitimar como objeto artístico, cabendo ao produto da criação apenas a “inutilidade” da experiência estética. De outro lado, vemos que, desde os primórdios da humanidade, o barro sempre foi um dos materiais mais utilizados pelo homem em objetos utilitários como panelas, pratos, vasos. Na arte, contudo, também é possível unir as duas pontas e criar algo que exceda qualquer uma das premissas limitadoras. Exemplo disso é a exposição coletiva Os arrombados, em cartaz até 17 de dezembro no Ateliê Águas Belas (também conhecido como ateliê Chris Machado), no Recife.

Para realizar os trabalhos da mostra, os artistas Christina Machado, Joelson Gomes, Maurício Castro, Renato Valle, Dantas Suassuna, Rinaldo, José Paulo e Daniel Santiago giraram o ponteiro na direção contrária. Aqui, o tempo da cerâmica é outro, passando por uma série de processos “argilosamente” incertos até que, finalmente, o barro vá ao forno. E foi justamente percorrendo esses caminhos “anti-horários” que eles realizaram os trabalhos expostos, a convite da própria Chris, que mantém com eles laços de amizade cultivados há quase três décadas, tempo também do seu ateliê, onde o barro é outro velho amigo (ver projeto OcupeChris). 

Os artistas durante a vivência do OcupeChris, no Ateliê Águas Belas. Foto: Francisco Baccaro
Os oito artistas durante a vivência no Ateliê Águas Belas. Foto: Francisco Baccaro

O grupo de artistas se reuniu durante um ano – sempre às quartas-feiras –, no mesmo lugar da exposição. Ao adentrar o portão que dá acesso ao quintal do número 53, na Rua Águas Belas, no bairro da Torre, o visitante se depara com a “maquete” de uma casa, a Casa de Mauribondo, construída pelo artista Maurício Castro. Simultaneamente, a obra traz a sensação de indicar o lugar da exposição na qual estamos, como se a maquete correspondesse ao ateliê de Chris. Desse ponto de partida, seguimos adiante para a parte interna, onde Ferramentas inúteis, de Joelson Gomes, nos recebe, sugerindo justamente que, aqui, o tempo é outro: é o dos encontros, das conversas jogadas fora, das gargalhadas e da despretensiosidade de um copo de cerveja no fim do dia com velhos amigos.

Numa dessas conversas de fim de tarde, Maurício Castro nos falou, sentado à mesa da última sala da mostra, onde estão alguns catálogos e livros a serem folheados: “Hoje em dia, a compressão do tempo faz com que você não consiga fazer nada, fica difícil encontrar os amigos. Aqui, a argila e a cerâmica foram uma consequência, porque o projeto tinha uma motivação emocional. A leveza desse grupo de se encontrar, de conversar e de ir aos poucos resulta num processo de experimentalismo mais livre”. “Atualmente, pelo fato da arte ter se tornado tão conceitual, as pessoas se preocupam muitas vezes com o resultado que querem obter antes mesmo de se lançar num processo. Experimentar é você se lançar num processo onde você não sabe aonde vai dar”, complementou.

Casa de Mauribondo, obra de Maurício Castro. Foto: Francisco BaccaroCasa de Mauribondo (ou o projeto da casa de Maurício Castro). Foto: Francisco Baccaro

Andando pela casa até a sala onde Maurício nos esperava, passamos por dois cômodos diferentes que abrigam a mostra, e ainda pela própria cozinha. Nesse percurso, a exposição se mistura às obras de Christina, que já estavam no ateliê, como por exemplo, as 60 máscaras produzidas junto aos pacientes do Hospital da Tamarineira, tiradas do molde do próprio rosto da artista. Chris, que começou o namoro com o barro nos anos 1980, saiu da cozinha e se juntou a nós, sentados na mesa, lembrando memórias de sua trajetória artística: “Fui da primeira turma de Artes Plásticas na UFPE. Durante o curso, peguei muito pouco em materiais que pudessem ser tridimensionais. Quando terminei, conheci uma pessoa que estava trabalhando com cerâmica… Aí, pronto, esqueci tudo”. Ela conta que foi “criando uma história particular com a cerâmica” e começou a ter seu laboratório. “Foi quando pairou essa história de eu ser só 'ceramista', como se não fosse artista. Mas depois a cerâmica cresceu, deixou de ser só uma coisa decorativa para ser um ‘objeto de arte’, e eu consegui sair desse lugar de 'ceramista'.’’

Ela também lembra que, na época, Rinaldo, Zé Paulo e Joelson a procuraram, nesse mesmo ateliê, para aprender cerâmica. Os laços dessa geração foram desenvolvidos ao longo de muitos encontros e parcerias de trabalho, como o grupo Gambiarra, composto por Chris, Zé Paulo, Maurício Castro, Rinaldo, Dantas Suassuna e Maurício Silva. O Gambiarra chegou a realizar, em Paris, em 1999, na Galeria Debret, a exposição Sistema móvel de sensações rústicas, com instalações feitas com malas de viagem. Outro grupo, com uma formação similar ao Gambiarra, fortaleceu a pesquisa com o barro em Pernambuco. O Corgo investigou as territorialidades do material em diversas cidades do interior do estado, numa pesquisa que culminou em mostra no extinto Salão de Artes Plásticas de Pernambuco.

Chris Machado e Daniel Santiago. Foto: Francisco Baccaro
Daniel Santiago e Christina Machado com a mão na massa. Foto: Francisco Baccaro

“Foi uma situação muito ímpar a gente se encontrar aqui durante um ano. Colocamos muita conversa em dia, desenvolvemos esse laço maior com Daniel… No começo, a gente falava muito sobre o passado, depois foram se desenvolvendo outras conversas. Todos tinham a chave para vir a hora que quisessem, mas todos se encontravam na quarta”, relata Christina sobre a vivência.

A exposição Os arrombados – “pessoas de arromba”, segundo os expositores – carrega consigo a potência dos encontros (e reencontros). Quem visitar a exposição pode testemunhar isso batendo um papo com algum dos artistas, que frequentemente estão no espaço, além de “perder tempo” com os objetos “inúteis” e ver na cerâmica e no trabalho desses artistas uma forma de reinventar seu próprio tempo na casa aconchegante do Ateliê Águas Belas. A mostra fica aberta às quartas, das 9h às 17h, e aos sábados e domingos, das 16h às 20h. Entrada franca.

SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente, estudante de Jornalismo da Unicap e fotógrafa.

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