Curtas

Onde está Tenório Jr?

Animação 'Atiraram no pianista' resgata o nome e a história do músico brasileiro que desapareceu durante a ditadura argentina

TEXTO Willana Almeida

06 de Novembro de 2023

Filme de Fernando Trueba e Javier Mariscal teve estreia no dia 26 de outubro

Filme de Fernando Trueba e Javier Mariscal teve estreia no dia 26 de outubro

FOTO Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Francisco Tenório Júnior. Sabe quem é? Se não sabe, não precisa se envergonhar. Do seu desaparecimento para cá, o Brasil fez de tudo (com sucesso) para esquecer ou ignorar muitos dos seus grandes talentos musicais. Mas nem tudo está perdido. A existência do filme Atiraram no Pianista chegou aos cinemas com o intuito de elucidar o trágico destino do pianista brasileiro.

Longa-metragem documental de animação dirigido por Fernando Trueba (vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1993, com Sedução) e Javier Mariscal (indicado ao Oscar, em 2012, por Chico e Rita, em parceria com Trueba), Atiraram no pianista é uma ode ao legado do pianista e, por conseguinte, à música brasileira.

Mas, afinal, quem foi Tenório Jr? Um pianista cuja música e dos seus demais companheiros vinha sendo preparada desde os fins dos anos de 1950 e começo dos 1960, no famoso conjunto de inferninhos Beco das Garrafas, em Copacabana. Seu trabalho acabou derivando da Bossa Nova para algo mais pesado. O crítico do Correio da Manhã, o francês Robert Celerier, até chamou este estilo na época de “hard Bossa Nova”, comparando-a ao “hard bop” de Nova York, resultando em uma música instrumental adulta, vibrante e complexa. Havia uma base vigorosa de samba, ataques em uníssono dos metais, harmonias impressionistas e um pezinho na gafieira, porque ali ninguém era de ferro.

O Beco das Garrafas criou uma geração de músicos admiravelmente dotados e de uma compreensão musical surpreendentemente direta e instantânea. Dentre eles, os saxofonistas e flautistas Cipó, Paulo Moura, Aurino Ferreira, Juarez Araújo, J.T. Meirelles e Zé Bodega, Jorginho e, surgido um pouquinho depois, Victor Assis Brasil. De lá também emergiram os trombonistas Raul de Souza (ainda chamado de Raulzinho) e os irmãos Ed e Edmundo Maciel; os trompetistas Pedro Paulo, Hamilton e Maurílio; os violonistas Baden Powell, Durval Ferreira, Waltel Branco e Rosinha de Valença. 

No piano, o beco foi o nascedouro para Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas, Dom Salvador, Sérgio Mendes e Eumir Deodato. Sem contar ainda com os bateristas Edison Machado, Dom-um Romão, Wilson das Neves, Milton Banana e os arranjadores Moacir Santos, Lindolpho Gaya e tantos outros. Essa é só uma parte do panteão do qual fazia parte Tenório Jr. Uma galera da pesada que tocava pesado dividindo-se em grupos que iam de trios a sextetos, muitas vezes emulando um som como se tivesse saído de formações bem maiores.

Grandes discos foram lançados por essa geração como o Você ainda não ouviu nada!, com Sérgio Mendes e Sexteto Bossa Rio, O Som, com Meirelles e os Copa 5 e o de um grande músico, deferido como tal pelos demais grandes do seu tempo e dos quais era descaradamente o mais novo. Em 1964, Tenório tinha apenas 21 anos. Era estudante do quarto período de Medicina e lançou seu único disco como bandleader, Embalo, um dos poucos discos de fato decisivos e definitivos do instrumental nacional cuja edição original, pela RGE, chega hoje a cotações siderais nos leilões de LPs.

Seu prestígio era tanto que os diretores da gravadora, José Scatena e Benil Santos, não só lhe deram um disco inteiro, como também concederam liberdade para escolher o engenheiro de som, selecionar o repertório, fazer os arranjos, reunir os músicos e até resolver como seria a capa. Acompanhado de um time de primeira grandeza, Embalo mostra um compositor de harmonias inovadoras, onde samba e jazz se juntavam numa explosão de modernidade e explica o motivo de Tenório ter passado rapidamente de acompanhante para comandante.

Mas tudo que é bom dura pouco. O cativo, embora pequeno nicho, que apreciava a música instrumental adulta praticada no Brasil, naquela primeira metade da década de 1960, não foi suficiente para convencer as gravadoras a continuarem investindo em tal segmento. Sem  mais nem menos, toda uma tentativa de se criar uma música brasileira moderna se esvai. A partir de então, o máximo tolerável eram os trios comportados de piano. Restou aos instrumentistas a saída do aeroporto, com muitos nunca mais voltando, ou se sujeitando a qualquer outro tipo de música. Independentemente dos seus respectivos destinos, nenhum teve um fim tão brutal quanto Tenório Jr.

Até 1976, Tenório deixou registrado seu piano em discos como, Índia, de Gal Costa, o “disco do tênis”, do Lô Borges, Minas, de Milton Nascimento e o de Marku Ribas, de 1976. A lista se estenderia com faixas tiradas de álbuns de Nana Caymmi, Joyce, Wanda Sá, Eumir Deodato, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Johnny Alf e tantos outros. O fato de virtuoses como Egberto, Edu e Alf quererem o músico em seus trabalhos já dá indício da grandeza a qual Tenório era com as teclas.

Em 18 de março de 1976, Tenório era o pianista de Vinícius de Moraes e Toquinho, que se apresentavam em Buenos Aires e estavam encerrando a turnê naquela fatídica noite. De volta ao hotel Normandie, resolve ir à farmácia e comprar um sanduíche na esquina. Nunca retornou. Foi um dos primeiros “desaparecidos” do golpe que, cinco dias mais tarde, depôs a presidente Isabelita Perón. Parte da trajetória de Tenório e uma boa contextualização desta efervescente cena musical brasileira, em contraste com o período tenebroso da política latinoamericana está no filme de Trueba e Mariscal. 

O fato é que Tenório era inocente. Apolítico, seu único interesse era a música – sua chave com o mundo. A aparência com algum “perigoso” intelectual o fez ser preso, interrogado e torturado. Constatado o engano, quando foi descoberta sua inocência, já era tarde. Sabia demais. Viu e ouviu mais do que deveria. Seu desaparecimento teve a complacência da embaixada brasileira em Buenos Aires, que sabia de sua captura, o local em que estava e, mesmo assim, alegou nada saber a um aflito Vinícius de Moraes que estava desesperadamente à sua procura. E com a condescendência do governo militar brasileiro de então, Tenório Jr. foi assassinado em 27 de março de 1976 com um tiro na cabeça na Escola Superior de Mecânica da Armada (centro de sevícias ao qual os presos políticos argentinos eram submetidos). Seu corpo nunca foi encontrado. 

Tenório Jr. tinha 33 anos e quatro filhos. Sua mulher, no Rio de Janeiro, esperava o quinto, que nasceria um mês depois. Há hoje uma placa com seu nome na fachada do hotel Normandie.

WILLANA ALMEIDA é idealizadora do blog Ouvido Obsoleto e do programa Audio Mundi onde apresenta obras de gente de várias partes do planeta.

 

 

 

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