Curtas

O que a casa criou

Diogo Monteiro faz dos leitores seus cúmplices em seu novo livro de contos

TEXTO Valentine Herold

02 de Março de 2022

O escritor envolve seus leitores com 16 narrativas curtas

O escritor envolve seus leitores com 16 narrativas curtas

Imagem Hesíodo Góes - Tempo Conteúdo / Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]

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Iniciar um livro de contos de um autor estreante é um pouco como adentrar numa casa desconhecida. A portas fechadas, cada cômodo se apresenta misterioso, esperando para ser descoberto e, no final da visita, percebemos finalmente o que há em comum entre todos os quartos, sala, banheiros, cozinha, quintal. Num livro de contos, cada história também carrega esse quê de mistério e os seus elementos são costurados por um fio condutor temático entre as narrativas – ora de forma muito explícita, ora brincando com a subjetividade e instigando nos leitores esse exercício interpretativo.

Essa metáfora da casa não poderia ser mais certeira ao falarmos sobre a primeira coletânea do pernambucano Diogo Monteiro. Vencedor do Prêmio Sesc 2021 na categoria Contos, ele acaba de lançar pela Editora Record O que a casa criou, obra que reúne 16 narrativas curtas, unidas por questões relacionadas à morte, a esse vazio que insiste em crescer após a partida repentina de alguém amado.

Luto, ausência e brutalidade são palavras-chaves de todos os contos. A atmosfera é predominantemente noturna e os personagens idosos ou crianças: fases opostas da vida, mas ao mesmo tempo tão semelhantes em suas vulnerabilidades. Uma criança que some, outra que morre numa tragédia coletiva, uma terceira que sonha em voar pela janela de casa e mais outro menino que vê, aos poucos, seu corpo desaparecendo até sobrarem apenas olhos e boca. Um avô que precisa vender a casa, uma mãe idosa tenta entender o assassinato do filho, enquanto outra senhora tem poderes de cura e de adivinha.

Assim são os personagens de O que a casa criou, sempre meio sós, meio tristes, tentando entender seus lugares no mundo e como lidar com o abismo existencial resultante do luto. Na prosa de Diogo Monteiro, há fantasia e um flerte envolvente com as tradições latino-americanas da literatura fantástica. Nesse surrealismo um tanto assustador, os não ditos são tão importantes quanto o que o autor escolheu deixar explícito. Como num jogo, Diogo revela e esconde, ilumina e apaga, confidencia e provoca, escreve como quem quer contar um segredo, mas não deseja (ou não pode) escancarar toda a verdade ainda. Os leitores são cúmplices e um pouco cocriadores das narrativas.


O livro de Diogo Monteiro foi o vencedor do Prêmio
Sesc 2021 e acaba de sair pela Editora Record
Imagem: Rostand Costa/Divulgação

Há também na sua escrita um apreço forte à linguagem: ele coloca a forma no mesmo patamar do conteúdo. Seja em primeira ou terceira pessoa, as vozes narrativas deste livro revelam grandes questões da vida, com potentes reflexões.

“Acho que essa escolha de deixar os enredos um tanto abertos faz parte da minha própria viagem como leitor, de não gostar tanto de histórias muito diretas e fechadas. Acredito que a história que não está escrita pode ser tão ou até mais interessante que o que está posto, gosto dessa margem de ação dada ao leitor”, comenta o escritor.

Sobre ter escolhido evidenciar a primeira e a última fase da vida em seus personagens, Diogo ressalta que a velhice e a infância são “as duas pontas da corda que se encontram na vida”. Para ele, elas têm em comum um certo desamparo, que acontece de maneira natural na infância e consciente na velhice. “O engraçado é que eu não escrevi tendo isso realmente como foco, essa coisa da morte, do luto. Quando eu finalizei o livro, percebi que havia essa aura em todos os contos. A morte é o abalo maior da vida, acho que ela existe realmente para quem fica, quem tem que lidar com a perda. Todo esse sentimento vai além da compreensão natural que temos, por isso nos marca tanto.”

Jornalista de formação, Diogo trabalha hoje com análise de pesquisas e estratégias em comunicação, atividade que, assim como a de repórter, que exerceu por muitos anos, envolve o trato com a palavra. Mas a prática da profissão acabou afastando-o um pouco da linguagem literária, resgate que vem fazendo agora com maior intensidade. “A faculdade de Jornalismo me fez um grande favor, mas, do ponto de vista literário, acabou me atrapalhando. Enquanto jornalista, prezo pela clareza no texto, por entregar as informações mais importantes logo de cara. Para escrever literatura, é preciso se desvincular disso tudo”, explica.

O que a casa criou marca a estreia de Diogo Monteiro no circuito comercial, sendo publicado pela primeira vez por uma grande editora, mas ele já havia lançado, em 2021, o livro infantojuvenil Relógio de Sol, pela editora independente pernambucana Vacatussa, mesma casa que o acolheu anteriormente nas coletâneas de contos Tempo bom e Abrigo, que reuniram ainda outros autores.

“Escrevo desde adolescente, mas nunca fui um autor organizado, com rotina. Meu processo é meio caótico (risos), mas agora tenho tentado colocar a escrita literária como prática. O Prêmio Sesc, que sempre admirei e que faz um trabalho fundamental na divulgação de novos autores brasileiros, me deu essa instiga maior, esse impulso para entender que realmente quero continuar levando a literatura.”

VALENTINE HEROLD, jornalista e mestre em Sociologia.

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