sujeitos silenciosos diante de um quadro em um museu
escafandristas deslocados do oceano”
Os versos iniciais de Sobre aquele tempo, de Micheliny Verunschk, parecem ecoar todo o corpo poético da compilação O poema se chama política, uma publicação de poetas pernambucanos em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de Pernambuco, que será lançada neste mês de fevereiro. “Naquele tempo éramos bichos assustados em nossas jaulas/ os pelos eriçados o coração descompassado diante a armadilha/ éramos também árvores em pequeno quinhão de terra cimentada/ as raízes em sua vida subterrânea em incomum esforço para romper a pedra”, prosseguem as estrofes de Micheliny, “naquele tempo escapamos só deus sabe como/ naquele tempo não tão distante que se confunde com esse exato instante/ angariamos o dia/aquele que se vive”.
“Este livro nasce no nordeste brasileiro, em um país que enfrenta a pandemia da Covid-19 sob a presidência do governo anticientificista e de extrema-direita do presidente Jair Messias Bolsonaro. É fruto da colaboração entre poetas pernambucanos ou radicados em Pernambuco em parceria com o MTST/PE. Toda a arrecadação financeira a partir da comercialização desta publicação, seja física ou virtual, será destinada ao benefício das famílias do movimento, que, assim como grande parte da população brasileira, segue completamente desassistida em meio a uma crise sem precedentes”, detalha a apresentação da coletânea, com design de Clara Simas, ilustrações de Clara Moreira e obras de 30 autores.
Entre elas e eles, estão Miró da Muribeca, Bell Puã, Adelaide Ivánova, Samarone Lima, Letícia Simões, Maré de Matos, Priscilla Campos, Marcelino Freire, Jussara Salazar, José Juva e Carlos Gomes, autor do poema-título. Gilberto Clementino Neto, um dos organizadores do volume ao lado de Julya Vasconcelos e Fábio Andrade (cada um também com um poema também nesse conjunto estético e político), diz que a ideia surgiu no primeiro semestre de 2020. “Vi uma articulação das artes visuais de fazer uma rifa para arrecadar recursos para o MTST e pensei em fazer algo parecido com a literatura. Liguei para Julya e depois para Fábio, fomos pensando em que autoras e autores chamar, e falamos com Felipe Cavalcanti, do MTST, que teve uma participação fundamental para pensar a dinâmica do livro e da campanha”, conta o escritor e pesquisador em literatura.
Entre setembro e novembro do ano passado, houve a #ChamaPolítica, a campanha de financiamento coletivo que arrecadou cerca de R$ 12 mil, dos quais 40% serão destinados para duas ocupações do MTST/PE: Sítio dos Pescadores, no Pina, e Aliança com Cristo, no Jiquiá. “Conforme o cenário político vem piorando, estamos vendo uma inquietação e articulação maior entre os setores culturais, a sociedade civil organizada e ONGs. Acho que vínhamos de um momento anterior, de tranquilidade e avanços sociais e para a classe cultural, mas isso tudo mudou nos últimos anos. E é muito bom ver que essas articulações geram produtos que levam a reflexões, mobilizam e trazem um retorno financeiro também, como é o caso do livro. Sabemos que muitas questões que são papel do Estado, sobretudo a garantia de alimentação e da moradia, estão ainda mais precárias durante a pandemia, então, nesse contexto, uma iniciativa como essa nos ajuda a fazer o mínimo básico para que as pessoas sobrevivam”, situa Felipe, da coordenação do MTST/PE.
O restante dos recursos foi usado para viabilizar a impressão, dividida entre as editoras Titivillus e Impressões de Minas. Dos 500 exemplares da primeira tiragem, uma parte vai para quem já apoiou a campanha, mas restam vários que podem ser vendidos. “No site do MTST nacional, que é o mtst.org, temos uma campanha permanente, com possibilidade de assinaturas, inclusive, para contribuições mensais ou doações pontuais. E vamos disponibilizar uma loja virtual onde as pessoas vão poder comprar tanto o livro como as camisetas. Quem quiser, pode entrar em contato conosco no perfil do Instagram @mtstpernambuco”, detalha Felipe.
“Essa antologia chegou como uma oportunidade de seguir agindo e criando coletivamente nesse contexto tão hostil de isolamento e pandemia”, observa a poeta Gianni Gianni, que aparece com Primeiro mandamento, um poema do seu ainda inédito primeiro livro, É feito em círculos, que deve sair ainda neste primeiro semestre. “É meu primeiro poema em uma antologia e fico muito contente que seja um projeto como esse, gestado lado a lado por Gilberto, Julya e Fabio com o pessoal do MTST. Ao mesmo tempo, você costura vozes de poetas pernambucanos contemporâneos que são muito diferentes. O projeto tem essa força de trazer vozes tão distintas, mas alinhadas no posicionamento diante do mundo, e isso é algo que me encanta.”
Com E a insanidade reina ruidosa, renata pimentel sinaliza para a importância da arte em “momentos de exceção”. “Esse poema não foi escrito durante a pandemia, mas já trazia uma relação estreita com esse estado de exceção. Sempre que pensamos nesses momentos de exceção, vemos como a literatura e a arte sempre estão a iluminar os vãos mais escuros do humano. Vi uma coincidência grande entre esses versos, que estarão no meu próximo livro, que está no prelo, e o interesse da coletânea. Acho que nós, humanos, somos uma espécie contraditoriamente fracassada, mas existem as solidariedades nos momentos de extrema necessidade, como este”, alinhava. Não deve ser à toa, então, que a chama da poesia há de sempre rimar com luta por moradia.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.