Dentro dessas duas frentes poéticas, apresenta-se, fundamentalmente, a figura do corpo, como objeto mediador de todas essas experiências. É o corpo, portanto, que ama outro corpo igual ao seu e também que se situa entre as mazelas e, a bem-dizer, entre as delícias de outros brasis. Em seu mais recente livro, O morse desse corpo, publicado pela editora 7Letras este ano, o poeta coloca em posição central, como o próprio título sugere, esse mecanismo através do qual nos deslocamos pelo mundo.
Em seu último livro, o corpo se apresenta como sujeito de linguagem, mas de uma linguagem muito específica, que é o morse, dando-se, portanto, através de seus pequenos ruídos, de suas chagas, que recebe seu “morse de tosses”, num modo um tanto quanto cifrado e não plenamente acessível aos interlocutores. O morse, que está no corpo, aparece na pós-epígrafe, em que o poeta relata seu último uso antes do silêncio total, pela Marinha Francesa. Disto, é possível depreender que Domeneck lança mão de um código caduco e em desuso para dizer aquilo que parece sempre difícil de ser dito; e logo no primeiro poema, que dá título ao livro, vemos a figura quase drummondiana de um sujeito gauche: o morse desse corpo descreve um “bicho malparido”, que se embrenhará nas agruras do dizer e do sentir ao longo das páginas seguintes.
Esse “bicho malparido”, esse corpo morsificado vai, durante o longo poema de abertura, que possui 16 partes, quebrando-se em modos sintáticos. O dizer se torna progressivamente mais rarefeito, de modo a termos algo como: “esse este// corpo/ fabrica/ -se-o// couro/ tece/ -se-o”. Algo nessa composição descritiva do corpo parece perverter os versos-quasi-adágio de Manuel Bandeira, “os corpos se entendem, mas as almas não”. O sinal fechado, o trânsito difícil também se estabelece aqui entre esse corpo pleno de desejos, entre esse corpo político – na acepção mais ampla do termo – e o corpo histórico que, recuperando trechos de sua infância, busca se aninhar naquele quinhão que lhe convém de pátria, de amor e de história.
Ricardo Domeneck tensiona, neste livro, portanto, de modo muito singular, a experiência corporal. Diferente daquilo que poderia se esperar do título, nada aqui é imediatamente apreensível e as imagens, que ora se desdobram em autodepreciação ora em metáforas animalescas, tecem algo de dizível num código caduco, dado a pouquíssimos seres saber. O corpo é uma multiplicidade intraduzível em toda sua organização física e metafísica. E o fio condutor dessa relação é uma metafísica religiosa que passa, na primeira parte, pela figura de Obaluaiê, entidade do candomblé ligada às doenças, às chagas; enquanto na segunda parte, intitulada A senhora Enfermeira, vê-se a criação de uma entidade de cura, a Enfermeira, à qual recorre o poeta a partir da evocação das epígrafes, desta vez todas femininas.
O corpo, então, com seus códigos obscuros, macula-se e cura-se à medida que se autorrenomeia e busca explicar a dor em língua estrangeira a si. É um movimento complexo, afinal de contas, dentro de nossa tradição contemporânea de se ler o corpo. Lê-se, aqui, quase o mistério dos corpos, sem contudo lê-lo. Lê-se não aquilo que de imediato se pode dizer sobre. Lê-se uma tentativa de narrar o externo ao narrável. Lê-se, sobretudo, a madureza de um poeta que conseguiu se despir do falar fácil e aponta, desse modo, a um código ruidoso, ao código ruidoso da vida.
SERGIO MACIEL é poeta, tradutor mestrando em Letras Clássicas e um dos editores da Revista Escamandro.