Curtas

O debate

Política e jornalismo em cena

TEXTO Yuri Euzébio

01 de Agosto de 2022

Lançada na série 'Dramaturgias', da editora Cobogó, a obra vai virar filme

Lançada na série 'Dramaturgias', da editora Cobogó, a obra vai virar filme

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 260 | agosto de 2022]

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“Esta peça é escrita na urgência dos acontecimentos políticos do Brasil no ano de 2021. Será filmada e encenada assim que for possível e reescrita assim que for necessário.” Esta frase, que aparece na primeira página do livro O debate (Editora Cobogó, 80 p), é também um alerta dos autores acerca do valor do texto que se inicia a partir dali.

Como numa ficção científica, somos transportados até o futuro, mas um futuro próximo: outubro de 2022, quando ainda perduram as ameaças da pandemia (há uma nova cepa, 10 vezes mais contagiosa), mais exatamente no dia do último debate do segundo turno das eleições presidenciais disputadas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ainda presidente Jair Messias Bolsonaro. O cenário é o terraço do prédio de uma estação de TV, onde os jornalistas Marcos, editor do telejornal da noite, e Paula, apresentadora do mesmo noticiário, se encontram em pausas para cafés, cigarros e conversas sobre o próprio debate, as eleições, posições políticas, paixões e ideias, e suas vidas.

A obra, lançada dentro da série Dramaturgias da editora carioca, é construída a partir de afirmações contundentes, réplicas e tréplicas entre seus dois únicos personagens, que travam um debate particular entre os intervalos da disputa política. Casados por 20 anos e recém-separados, Paula, 42, e Marcos, 60, tentam se adaptar às transformações de sua relação, do país e do mundo. No decorrer dos encontros, eles irão lidar com o conflito de fazer jornalismo em tempos de manipulação da informação, a ética e o papel de isenção (?) da imprensa, da importância da tolerância e do respeito à democracia. Um debate sobre paixões privadas e ideias públicas.

Apesar do debate entre Lula e Bolsonaro estruturar a peça, eles não chegam a se configurar como personagens, surgindo apenas por meio de citações, além de o próprio evento político só nos ser transmitido a partir de ecos durante as conversas entre Marcos e Paula. Os temas da peça estão mais ligados à relação do ex-casal e suas convicções políticas, em que há divergências, mesmo que ambos sejam apoiadores do espectro progressista representado na candidatura de Lula, críticos da gestão Bolsonaro e alinhados a algumas pautas ideológicas caras à esquerda. Na amálgama da peça, são misturados o debate político, uma DR dos protagonistas e uma discussão sobre o papel dos dois, enquanto jornalistas, nos rumos do embate.

Inclusive, uma dimensão muito importante na peça é a discussão dos limites do jornalismo, a ética jornalística, se existe isenção e objetividades possíveis dentro do contexto, refletindo os questionamentos ao papel da imprensa muito em voga no atual estado de polarização política. O papel do jornalismo na construção da democracia é discutido e repensado diversas vezes nos intervalos do debate presidencial. Num período em que a atividade jornalística é fundamental para o país, embora nunca antes tenha sido tão criticada e descredibilizada, a obra joga luz sobre a importância do ofício e reflete alguns meandros da profissão.

Dois dos maiores roteiristas e diretores brasileiros, o pernambucano Guel Arraes e o gaúcho Jorge Furtado, que são, juntos ou separados, responsáveis por grandes obras do audiovisual nacional, pela primeira vez escreveram juntos uma peça de teatro e, mais do que isso, uma obra abertamente partidária. Toda a insatisfação dos autores do livro está personificada em Paula e sua dificuldade em compreender como um país com tantas potencialidades está propenso a viabilizar um segundo mandato a um político que desprezou as vacinas, criticou o distanciamento social e o uso de máscaras e aparentemente não fez nada para evitar que parte da Amazônia e do Pantanal virassem cinzas. Marcos, por sua vez, apesar de concordar com Paula, pondera de forma pragmática sobre uma suposta isenção jornalística na qual os absurdos de Bolsonaro podem e devem ser discutidos, mas não previamente condenados pelos dois, sobretudo para o público.

Em entrevista sobre o livro ao programa Roda Viva de 20 de setembro de 2021, Guel Arraes revelou a clara, até óbvia, inspiração da história do livro no famigerado debate de Lula x Collor em 1989. Foi no programa que também revelou a ideia de filmar a obra, seja em um telefilme ou no cinema. Pouco depois, chega a notícia de que a narrativa será adaptada em um filme que marcará a estreia na direção do ator Caio Blat. Flávia Lacerda assina a produção artística e Luísa Arraes, esposa de Caio e filha de Guel, também está envolvida na produção, cujos planos é de ser lançada ainda antes do pleito eleitoral. No evento virtual de lançamento da obra, o casal de atores Enrique Diaz e Mariana Lima realizou uma leitura da peça e despontou como candidatos naturais ao papel principal. Porém não há confirmação sobre qualquer escalação do elenco.

O debate entre Lula e Bolsonaro que acontece na peça talvez não chegue a acontecer na realidade. Apesar das pesquisas eleitorais mais recentes apontarem o atual mandatário e o ex-presidente como os dois candidatos com chances mais robustas na disputa, o segundo aparece com uma margem ampla de vantagem ante o atual presidente, dando indícios de que a disputa pode ser encerrada no primeiro turno. Além disso, a já mundialmente conhecida falta de afeição do presidente Bolsonaro com as práticas do jogo democrático, somadas ao seu ostentado e indefectível (sic) histórico de atleta, forjado na prática apaixonada e recorrente de fuga dos debates políticos, certamente devem impedir que nesse caso a vida imite a arte.

Apesar da tentação contínua em interferir nos rumos do debate e enfatizar os absurdos do pensamento bolsonarista com uma intervenção no bloco final, os autores do livro e o casal de personagens optam pelo respeito ao contraditório e ao livre pensamento como prega o bom jornalismo, o que também arrefece e reata o laço amável na relação entre Marcos e Paula. Arraes e Furtado se arriscaram ao escreverem uma peça contemporânea que poderia envelhecer como o jornal de ontem que só serve para embrulhar peixe, como gostam de afirmar os detratores do próprio jornalismo, mas apontam um caminho para um futuro urgente que se aproxima cada vez mais rápido. É a arte refletindo nossas questões mais profundas e ensinando uma lição. Resta à sociedade aprender e se conscientizar com ela.

YURI EUZÉBIO é jornalista.

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