O Brasil profundo de Itamar Vieira Júnior
Em 'Salvar o fogo', seu novo livro após o fenômeno 'Torto arado', autor baiano volta a narrar a história de personagens invisibilizados
TEXTO Laura Machado
25 de Julho de 2023
Itamar Vieira Júnior ganhou o Prêmio Jabuti de 2020 e Prêmio Oceanos de 2020
Foto Divulgação/Renato Parada
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“Viro uma página, outra se sucede, e o que não fazia sentido a princípio desponta como uma revelação. Na teia do esquecimento, a memória se faz de doses iguais de verdade e de imaginação”. É através da conjunção natural entre o real e a fantasia, a verdade e a imaginação, que a obra Salvar o fogo é desenvolvida pouco a pouco, com a leitura de suas quase 300 páginas. Com lirismo e poética caminhando em conjunto, a obra é a terceira do escritor baiano Itamar Vieira Junior, que emergiu no cenário literário com o livro Torto arado, ganhador de honrarias importantes como o Prêmio Oceanos e o Prêmio Jabuti.
Em Torto arado, o leitor acompanha as irmãs Bibiana e Belonísia a partir do momento em que, ainda crianças, elas decidem explorar o objeto que a avó guarda com cuidado em um baú escondido, deparando-se com uma antiga faca. Em ação descuidada, uma das meninas corta a língua, perdendo a capacidade de falar. Como consequência da mudez de uma delas, a outra torna-se quase tradutora de sentimentos e emoções, porém com o tempo, as jornadas de Bibiana e Belonísia descruzam-se. Com a dualidade das irmãs e o culminar de narrativas sobrepostas no terceiro e último capítulo, o livro de estreia do escritor baiano traz as consequências do colonialismo e convida o leitor a pensar sobre a História do Brasil.
Resgatando esses temas (e até mesmo criando fios de ligação entre as personagens Bibiana e Belonísia e os protagonistas de sua nova obra) e também perpassando a trama familiar e questões de ancestralidade, Salvar o fogo traz diversos elementos que remetem à primeira publicação de Itamar. A narrativa da história se abriga na cidade de Tapera do Paraguaçu, interior da Bahia, e acompanha Luzia e seu irmão mais novo, Moisés, enquanto vivem cercados e cerceados pelas leis da Igreja católica, devido ao mosteiro que há séculos se localiza na região.
Dividido em quatro partes (A vingança tupinambá, Luzia do Paraguaçu, Manaíba e Alma selvagem), a primeira seção é narrada pelo menino Moisés, a segunda por Luzia, a terceira por Maria Cabocla, personagem conhecida dos leitores de Torto arado e que aqui ganha uma voz própria e ressonante. Na quarta e última parte do livro, a história é desenvolvida por um conjunto de vozes sobrepostas responsáveis por fechar a obra (será que a obra se fecha realmente?).
Capa da obra Salvar o fogo, publicada pela editora Todavia. Imagem: Divulgação/Todavia
Luzia é a parte central de toda a narrativa e, mesmo quando não tem a história contada através do seu olhar narrativo, é um dos pontos mais essenciais da trama. Vieira Junior descreve-a: “diferente da mãe e das mulheres da aldeia, Luzia, a irmã mais velha, parecia não ter interesse pela arte do barro, nem mesmo pelo roçado. Dizia que lavoura era trabalho para homem. Repetia, ao ver a ruma de mulheres caminhando para o mangue à beira do Paraguaçu, que não foi feita para ficar sob o sol catando mariscos, e que se pudesse moraria na cidade grande”.
Rejeitada pelas pessoas, Luzia rejeita de volta seus hábitos e estilo de vida, é lavadeira para o mosteiro e uma mulher forte e grosseira. Ao mesmo tempo em que carrega nas costas uma corcunda, a personagem é temida e vista como uma feiticeira. “Diziam que nos dias de lua, por onde Luzia andava, as coisas queimavam”, escreve Itamar em outro trecho. Vista como uma mulher que controla o fogo, Luzia é uma representação trêmula de mulher forte, que apesar de possuir seu valor, por vezes sua narrativa soa cuidadosamente calculada pelo autor, como se ele desejasse o didatismo extremo, explicando e justificando todos os aspectos na história.
A parte principal da composição de Salvar o fogo, porém, perpassa Luzia, Moisés e todos os demais homens e mulheres criados por Itamar. A verdadeira protagonista da obra é a história. A história da terra, da desigualdade, do poder da Igreja católica acima de todos os outros, do racismo e suas consequências, do apagamento ancestral e dos reflexos da colonialidade.
“O Brasil não se conhece mesmo. Você precisa pôr o pé na estrada e trilhar muitos e muitos quilômetros para encontrar coisas que a gente até duvida. Como eu cresci na periferia, essas dificuldades econômicas e sociais sempre marcaram o meu cotidiano. O que me assusta não é nem a pobreza, nem o estado de indigência, porque isso sempre existiu. Me assusta que as pessoas simplesmente ignoram tudo aquilo. As pessoas não conseguem nem olhar para o que está ao seu lado, então fingem que esse Brasil não existe, que essas pessoas não são dignas de um texto literário”, afirmou Itamar para entrevista na coluna de Fred Di Giacomo no portal Ecoa do Uol.
Interessado em contar estas histórias do Brasil profundo, o escritor explora esses temas em suas obras juntando a fantasia que a literatura de ficção permite com a realidade doida de gente viva, que respira, trabalha e segue vivendo sob controle de outros. A cidade de Tapera do Paraguaçu, por exemplo, é descrita como uma comunidade afro-indígena cujas atividades econômicas variam da agricultura e pesca para artes manuais. Representante do Brasil atual, o livro imagina histórias de pessoas silenciadas através dos séculos, desde sua cidade controlada pela Igreja, até os pensamentos e ideologias que regem as vidas dos personagens, mas cai no problema de repetir uma fórmula já vista.
LAURA MACHADO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.