Três dias antes, uma postagem foi feita no perfil do Instagram do rapper Djonga: “Nu. Esse é seu ídolo”. O artista estava há muito tempo ausente de suas redes sociais. Diante disso, o vídeo que acompanhava a mensagem gerou uma expectativa imediata – afinal, se aproximava o tradicional 13 de março, dia de ele lançar disco. Na peça publicitária, o artista aparece sempre calado. É condenado pelo motivo de “pensar demais, a ponto de se contradizer diversas vezes nos últimos anos”. E acaba guilhotinado. Três dias depois, o músico exibe sua cabeça cortada em uma bandeja prateada. A imagem que estampa a capa do recém-lançado Nu, álbum de oito faixas inéditas, confirma o que ela representa: Djonga morto. Agora seria com Gustavo Pereira.
O último dia 13 de março manteve o rito repetido, ano após ano, desde Heresia (2017), seu álbum de estreia. Assim que Nu foi lançado, às 12h, o nome de Djonga voltou a figurar entre os assuntos mais comentados do Twitter, depois de um longo intervalo de tempo em que ele optou pelo silêncio. As primeiras entrevistas, no entanto, apresentavam um Gustavo cansado e com a promessa de que este poderia ser seu último disco. A ideia, daqui para frente, segundo o próprio, seria trabalhar apenas com singles. “Vou descansar um pouco a mente. Passei uma mensagem muito legal para as pessoas. Quem me admira já ‘fraga’. E eu entendi que quem não gosta não vai gostar mesmo, não vou sofrer com isso”, revelou ao jornal mineiro O Tempo.
"Meu coração parece um balde furado, acho que o vazio me pegou em cheio”, canta Djonga. Imagem: Jef Delgado/Divulgação
É desse momento vivido por Djonga que surge Nu, um disco, em muitos sentidos, introspectivo. “Quanto mais sucesso menos divertido/ E eu não era assim, eu sou fruto do meio/ Meu coração parece um balde furado, acho que o vazio me pegou em cheio”, canta o rapper nos últimos versos de Nós. A canção que abre o disco traz diversas versões do músico tendo que lidar com as tensões sociais enfrentadas pelo povo negro. Por isso, está no plural. Não por acaso, a última faixa do álbum é Eu. A música que cita Wilson Simonal, perseguido pela mídia na época da ditadura de 1964, se propõe a revelar o que o artista tem de mais íntimo. Além dos seus acertos, os seus erros: “Humano demais, esse é seu ídolo/ Humano demais pra não aprender com isso aqui/ Sou tão só, tão eu”, ele versa – e não à toa.
No final do ano passado, um vídeo publicado nas redes sociais mostrava Djonga em um show no Rio de Janeiro, cantando Olho de tigre, sucesso que alavancou sua carreira em 2017, e que eternizou o refrão “Sensação, sensacional”. Detalhe: o evento aconteceu um dia antes de o Rio de Janeiro alcançar a marca de 371.075 casos confirmados de Covid-19 e 23 mil mortes, segundo balanço divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde, de 6 de dezembro. Os relatos do público confirmaram que não havia controle de segurança contra a doença. Djonga, então, foi atacado por estimular aglomeração e acabou sendo “cancelado”. Sem pedir desculpas, respondeu pelo Twitter: “O show foi pra galera que só trabalha e se fode e está exposta a um milhão de merda o tempo todo, e que não teve o direito de parar. Acho estranho a favela só poder se foder e não poder curtir”. Após o episódio, abandonou os holofotes. É desse fato que vem a “morte” de Djonga, materializada em Nu.
Todas as oito canções foram compostas durante a pandemia, e chegaram acompanhadas de lyric vídeos, usando a estética dos videogames – apenas Nós ganhou um videoclipe, que, inclusive, elabora uma clara releitura de This is America, música de Childish Gambino vencedora do Grammy 2019, ao retratar a violência policial e armada e os massacres nos EUA sob o manto do racismo histórico.
Em Ó quem chega, o cantor usa a mesma coroa que, em seguida, tenta devorá-lo como um Pac-Man em Xapralá. Aqui, outra referência se destaca: Lucas Penteado, ator e slammer negro, de origem pobre, que ganhou visibilidade após sua participação na atual edição do Big Brother Brasil (TV Globo), culminando na sua desistência após se sentir perseguido pela maioria dos participantes. “É melhor desistir ou viver humilhado?/ Coisas que passam na mente de gente que vem de onde vem, ó, Lucas Penteado”, reflete em versos que atestam a atualidade do disco.
Apesar de soar melancólico, o álbum também tem espaço para músicas com o beat alucinante. É o caso de Ricô, canção escrita em parceria com o MC também mineiro Doug Now, e que traz reflexões sobre coisas que nem todo o dinheiro do mundo pode comprar. Já em Vírgula, outra canção que destoa das demais, Djonga atualiza a letra de Casa de bamba (1968), samba de Martinho da Vila: “Na minha casa, ninguém passa fome/ Todo mundo bebe e todo mundo come/ Na minha casa, vale tudo, chefe/ Dança mina com mina e homem com o homem”.
Caso Gustavo opte por não produzir outros álbuns, Nu consegue fechar um ciclo iniciado por Heresia (2017). Com capa que faz referência ao Clube da Esquina (1963), o então estreante cantor estabeleceu, com o trabalho, um sarrafo alto como expectativa. No segundo O menino que queria ser Deus (2018), Gustavo versa que é “um daqueles que dá o papo reto e vive torto”, enquanto mira o objetivo antecipado pelo título. O desejo é alcançado um ano depois, com o disco Ladrão, no qual o personagem se consolida como um anti-herói. Em Histórias da minha área (2020), ouvimos um álbum carregado de crônicas, no qual a origem do artista é contada pela perspectiva do personagem que se tornou. Entrelaçando a própria vida com a evolução de sua criação, o rapper acabou indicado ao prêmio de Melhor Flow Internacional no BET Hip Hop Awards, realizado nos Estados Unidos, sendo o primeiro brasileiro nesta posição.
Em Nu, Gustavo reflete de forma direta, sem intermediários. A obra é a expressão de um artista que aceita o julgamento de seu personagem, mas que espera ser condenado como um humano. E essa vontade pode ser sentida até nos desejos mais simples versados por ele. “Saudades de andar por aí/ Vento na cara e ninguém pra assistir/ Falar o que penso sem ter que acertar/ Sabe a sensação de só existir?” – a batida, então, acelera e o flow entra num fluxo progressivo, como uma sequência de socos – “Sou igual a você/ Essa é a verdade: toma!/ O mundo é a doença, nós é só sintoma. Olha o espelho, pô, veja seus hematoma”.
Nu reivindica o seu direito de poder ser imperfeito. Se na impactante imagem da capa Djonga oferece sua cabeça numa bandeja prateada, o discurso humanizado e despido até as suas mais profundas vulnerabilidades, destrinchado pelas oito faixas, contraditoriamente demonstra uma incontestável força ao admitir essas fragilidades inevitáveis do cotidiano. Afinal, é preciso descer até o fundo para pegar impulso e emergir, puxando todo o fôlego possível para seguir nadando contra a corrente.
PAULO HENRIQUE TAVARES, jornalista formado pela Unicap desde 2012.
Nu reivindica o seu direito de poder ser imperfeito. Se na impactante imagem da capa Djonga oferece sua cabeça numa bandeja prateada, o discurso humanizado e despido até as suas mais profundas vulnerabilidades, destrinchado pelas oito faixas, contraditoriamente demonstra uma incontestável força ao admitir essas fragilidades inevitáveis do cotidiano