Curtas

Newton

Um romance breve que anula seu narrador

TEXTO Yuri Euzébio

01 de Dezembro de 2022

Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal, escritor e editor

Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal, escritor e editor

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022]

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Em determinado momento da história, enquanto conversa com um cônsul, Newton se justifica sobre o porquê de viver de uma maneira, digamos, própria. “Ideologia? Tenho o direito de ser o que sou. Vivo assim há mais de20 anos. Nunca tive RG, CPF, não me alistei no Exército, não há registro da minha filiação, idade, lugar de nascimento, estudei como ouvinte, sempre vivi do que escrevo”, indicou. 

Newton e ponto final. Só isso mesmo. Sem sobrenome, registro geral, certidão de pessoa física, ou qualquer outro documento. Convém registrar também que não há qualquer relação com o célebre cientista inglês. Alguém invisível, que vive na mais profunda marginalidade. E aqui no sentido conotativo do termo, de alguém que vive à margem da sociedade. Já conheceu alguém assim? 

Esse é o protagonista que também dá nome ao novo romance de Luís Francisco Carvalho Filho, advogado criminal, escritor e editor, publicado pela Editora Fósforo. Sob o ponto de vista burocrático ou formal, Newton não existe e o mais estranho é que ele se sente bem dessa forma e pretende dar continuidade a sua inexistência. Alguns podem entender essa atitude como suspeita ou simples desleixo, mas em suma o que Newton busca é o apagamento de sua memória e dos seus rastros. 

Luis Francisco Carvalho Filho é advogado criminal há mais de 40 anos e em seu segundo romance expõe as fissuras e contradições do sistema judiciário por meio das provocações e da linha de pensamento e de defesa de suas condições, empreendidas por Newton. “Eu tenho um livro anterior de contos que se chama Nada mais foi dito, nem perguntado, que saiu pela (editora) 34 em 2001. Nesse primeiro livro, queria desenvolver uma experiência literária que era a de escrever contos que, somados, formassem uma história, mas não consegui”, disse o autor. “Mas aí eu acabei me empolgando com essa ideia de eliminar a figura do narrador”, explicou.

Ao longo dos 17 capítulos do romance, Newton dialoga sempre com um interlocutor novo, seja com o tabelião, a juíza, o escrivão ou o crítico, e a sua companheira. “No meu primeiro livro, a figura do narrador já era muito pequena. Em Newton o desafio era construir a história sem ter essa personagem, a não ser na designação dos títulos”, reitera Luis Francisco. Dessa busca incessante do escritor em anular o narrador é que nasceu a opção pelos diálogos curtos do romance, quase como uma peça de teatro.

“Eu sempre tive atração por diálogos. O meu outro livro também é, basicamente, feito por diálogos. Eu escrevi o Newton há alguns anos, e ele ficou repousando. Eu modifiquei muita coisa ao longo do tempo e percebi que ele continuava vivo”, relembrou. Segundo o escritor, a história de Newton resistiu à barreira e ao efeito do tempo, o que provou o seu valor literário. No livro, à medida que a trama e as conversas avançam, a situação do escritor se torna cada vez mais absurda e insustentável.

A objetividade, dinâmica, fluidez e a coloquialidade são características marcantes no livro. Além disso, o protagonista é um personagem único, complexo, que não necessariamente desperta paixões à primeira vista. “Ele se sente perseguido. É um personagem interessante, porque não gera simpatia em um primeiro momento, quer dizer, ele é um cara esquisito. E isso é proposital, porque é muito mais fácil você escrever sobre a perseguição que sofre uma pessoa simpática, mas, e com alguém que tem manias e é diferente?”, resume Carvalho Filho. De acordo com o autor, Newton era bem capaz de ter existido, ali nos anos 1980, dentro de um ambiente acadêmico em São Paulo.

 
O autor construiu a obra focando nos diálogos.
Imagem: Divulgação

Ainda que possua uma vasta experiência com o direito criminal, Luís Francisco afasta qualquer ideia de que Newton transmita uma suposta insatisfação sua com o sistema. “Eu acho que a minha experiência como advogado criminal ajuda a formular esse caráter kafkiano do absurdo dos processos em Newton. Mas o personagem não está diretamente ligado à minha atividade profissional, digamos assim”, relata. Carvalho Filho também é um antigo colaborador da Folha de S.Paulo. Começou a atividade nos anos 1980 e permanece ligado ao jornal até hoje. Atualmente é colunista de Cotidiano.

“Eu costumo dizer, e digo com absoluta tranquilidade, que o jornal exerceu em mim uma influência muito importante na escrita, inclusive como advogado. Eu aprendi que eu tenho que escrever pouco, e em um processo industrial. E isso ajuda você a ser mais objetivo, a se livrar de coisas que não são essenciais”, detalha o escritor. Quando se refere ao livro, o autor prefere utilizar o termo “exercício literário”, ao invés de tratá-la como um romance, o que demonstra seu profundo respeito pela seara literária. “Eu acho que romance, do ponto de vista objetivo, seria uma coisa mais ampla, mais complexa, isso, na minha visão”, defende.

A opção por suprimir um narrador e deixar pontas soltas, sem resolução, durante a obra fazem parte de um experimento singular. O exercício literário torna o leitor uma espécie de cúmplice e investigador da história de Newton, um personagem ambíguo e misterioso por natureza. Apesar da óbvia relação com Kafka, na escalada nonsense e absurda da trama, Carvalho Filho aponta outro autor como seu norte na literatura. “Se eu tivesse que dizer qual é o escritor que mais causou impacto na vida, eu diria que é Dostoievski e, na literatura brasileira, Guimarães Rosa”, destacou.

Newton, inclusive, faz várias citações não aspeadas a Guimarães Rosa em diálogo com um crítico. Além da escrita e da leitura, a relação de Carvalho Filho com os livros se traduz no período em que dirigiu a Biblioteca Municipal Mário de Andrade, entre 2005 a 2008, em São Paulo, e, mais recentemente, no ano passado, na fundação da Editora Fósforo, da qual é sócio ao lado de Rita Mattar e Fernanda Diamant. “Isso aí já é um pouco fruto da velhice. Eu sempre fui advogado, amigo da Fernanda, que tinha essa ideia de fazer uma editora e eu, de repente, topei”, esclarece.

Mesmo sócio, seu objetivo nunca foi publicar suas próprias produções. O que só aconteceu por insistência da Rita Mattar, editora principal da Fósforo. “Eu não conhecia a Rita, o livro surgiu no meu processo de apresentação a ela”, enfatizou.

É salutar para a própria existência das artes, quando elas conversam entre si. A intersecção entre as múltiplas vertentes artísticas é o que as alimenta. Quando a literatura conversa com o teatro, ou a música com o cinema e vice-versa, ambas as expressões saem ganhando. Newton nasceu inserido nesse debate e com vocação plural.

“Eu acho que existe uma possibilidade de adaptação para o cinema ou teatro. O meu outro livro, Nada mais foi dito, foi adaptado para o teatro e teve uma carreira legal, com duas temporadas em dois teatros diferentes, então eu ficaria bem feliz”, comentou. Luís Francisco, que se apresenta e prefere ser chamado como Chico, garante que logo cedo irá começar a pensar em um próximo livro.

YURI EUZÉBIO, jornalista.

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