Quem se lembra da greve dos funcionários da Caixa Econômica Federal e de suas incríveis ramificações, cujo desfecho se conjuga com o impeachment do “caçador de marajás” Fernando Collor, em 1992? Não toque em meu companheiro (Brasil, 2020), o novo documentário da realizadora Maria Augusta Ramos, há de funcionar como resgate essencial do passado em um país que não sabe muito bem lidar com a memória. De Justiça (2004) até O processo (2018), passando por Seca (2015) e todos os outros, as narrativas de Maria Augusta dão conta de situações específicas – por exemplo, as audiências de custódias para menores em Juízo (2007), as turbulências pós-manifestações de 2013 em Futuro junho (2015) – porém radiografam as entranhas do modus vivendi do nosso “colosso pela própria natureza”.
Não é diferente em Não toque em meu companheiro. Embora a partir de um recorte pontual, que nesse caso é a paralisação ocorrida em outubro de 1991 e repreendida com a demissão de 110 funcionários do banco estatal, ela sempre fala do Brasil e das fendas abissais da nossa sociedade. “Essa é uma história comovente que precisa ser contada, pois poucas pessoas a conhecem. É sobre solidariedade em um momento de individualismo tão grande e de falta de união entre a classe trabalhadora. É importante demais, ainda, rever tudo isso durante uma pandemia que requer, justamente, solidariedade”, diz a diretora à Continente.
Ela revela que foi convidada pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal – Fenae e rodou o documentário, uma produção dessa federação e da sua No Foco Filmes, em “pouquíssimo tempo” – de agosto de 2019, quando foram captadas as primeiras imagens, a fevereiro deste ano, quando ocorreu uma exibição em São Paulo para cerca de mil funcionários da Caixa. “Existem pessoas ligadas à diretoria da Fenae que foram demitidas e viveram na pele aquele momento. Propus a elas que o filme trouxesse essa história para o presente, para fazer um paralelo entre o momento do governo Collor e atual governo de Jair Bolsonaro, pois as similaridades são enormes. A ideia era não só retratar aquele momento, mas refletir sobre tudo que está acontecendo atualmente no Brasil, como a repetição das políticas de privatização”, afirma.
Não toque em meu companheiro nos conduz àquele 1991 da greve que resultou em demissão para 50 funcionários do banco estatal em São Paulo (SP), outros 30 em Belo Horizonte (MG) e mais 30 em Londrina (PR). A narrativa abre, aliás, com um trecho do Jornal Nacional em que o apresentador Sérgio Chapelin noticia o lançamento do pacote econômico de Collor, com ênfase na ânsia por “saneamento moral” e na possibilidade de “afastamento de maus funcionários”. “Não temos mais alternativas, o Brasil não aceita mais derrotas, é vencer ou vencer”, vaticinava o primeiro presidente da República eleito pelo voto direto depois da ditadura militar que comandara o país entre 1964 e 1985. Quando a greve irrompe, portanto, o “afastamento de maus funcionários” se dá na prática para aquelas 110 pessoas, que logo concebem um plano para se sustentar enquanto persistem na luta pela readmissão.
Imagens da greve no Brasil de 1991. Fotos: No Foco Filmes/Divulgação
“Era uma época em que o sindicalismo era forte e essas pessoas foram demitidas ilegalmente, pois greve é um direito do trabalhador”, recorda Maria Augusta, que conversa por telefone de Amsterdã, onde atravessa os meses de incerteza da pandemia. “Esses 110 entraram na Justiça. Mas, enquanto não eram readmitidos, os outros 35 mil funcionários da Caixa concordaram em dar uma contribuição do seu salário para pagar o salário dos outros que haviam sido demitidos”, acrescenta a diretora. Era uma contribuição de 0,3% e eles, bancários que eram, sabiam bem como organizar esse fluxo. Não toque em meu companheiro era o nome da campanha, uma crucial ação afetiva e política que talvez hoje não ocorresse. “Acho muito difícil. Você imagina isso com a mentalidade atual da classe trabalhadora?”, pergunta Maria Augusta.
Em determinada cena, na costura que ela faz entre passado (vale ressaltar o fantástico acervo de documentos e imagens da Fenae) e presente, a filósofa Marilena Chauí fala sobre “a uberização do trabalho”. Vemos os grevistas de 1991 e suas reminiscências; depois, jovens empregados da Caixa a discorrer sobre a postura neoliberal de bater metas de produtividade. “Queria não só pensar em termos de políticas econômicas neoliberais, mas traçar esse paralelo, para mostrar um mundo em que as pessoas se consideram empreendedoras de si mesmas, sendo essa ilusão vendida e comprada pela classe trabalhadora, aniquilando qualquer tipo de solidariedade, inclusive entre os servidores públicos”, situa a cineasta.
No entremeio, imagens de uma agência-barco a singrar rios da Amazônia, da entrega de apartamentos de um conjunto habitacional em São Paulo, unidades construídas e vendidas a partir do programa Minha Casa, Minha Vida, operacionalizado pela Caixa, e depoimentos do economista Luiz Gonzaga Belluzzo a refletir sobre a “armadilha neoliberal” que visa a “flexibilizar o mundo do trabalho”. A Caixa Econômica Federal, afinal, não é apenas um banco, é um dos símbolos de um Brasil sob erosão com os atos de um governo de “poder despótico”, na visão de Marilena Chauí.
Filme fica disponível para streaming ainda este ano. Foto: No Foco Filmes/Divulgação
Ao menos na história que lhe serve de viga mestra, Não toque em meu companheiro tem um final feliz: com o impeachment de Collor, todos os 110 ex-funcionários foram reintegrados um ano e 13 dias após a demissão. Há uma edição de um periódico da Central Única dos Trabalhadores – CUT, de 21 de outubro de 1992, a sublinhar a tenacidade da classe trabalhadora. Na emocionante imagem que encerra o filme, mulheres grevistas dão as mãos, já ao som da interpretação de Shelley Katz para Goldberg variations, BWV 988 Aria, peça para piano escrita por J.S. Bach. Pergunto a Maria Augusta Ramos o porquê dessa escolha, já que em todos os seus filmes não existe trilha sonora incidental, e ela responde: “Senti a necessidade de um réquiem. Acho que é isso: a solidariedade entre os trabalhadores está se perdendo, então quis um réquiem para a greve, para aquela luta”.
Em tempo, uma boa notícia: o documentário de 75 minutos deve entrar em alguma plataforma de streaming até o final deste primeiro semestre. “Quero que o maior número de pessoas tenha acesso, certamente o mais rápido possível”, explica Maria Augusta Ramos. Não sabemos como o Brasil e o mundo estarão, é fato, mas é bom revisitar o passado para (re)encontrar outros exemplos de resistência.
LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.