Nan Goldin
A convite do Instituto Tomie Ohtake, fotógrafa norte-americana realiza palestra sobre representatividade, visibilidade feminina, gênero e sexualidade, questões que permeiam o seu trabalho
TEXTO Rafa Feitosa
01 de Novembro de 2017
Fotógrafa em palestra concorrida no Tomie Ohtake, na terça (31)
FOTO Ricardo Miyada / Divulgação
Por volta das 17h da terça, 31, derradeiro dia de outubro, a entrada do Instituto Tomie Ohtake se encontrava ocupada por admiradores de Nan Goldin, uma das maiores fotógrafas contemporâneas no circuito mundial. A convite do museu, a artista estava em São Paulo para dar uma palestra gratuita sobre as questões de representatividade, visibilidade feminina, gênero e sexualidade que permeiam o seu trabalho.
Cerca de 300 pessoas dividiam o espaço da entrada do museu comigo. A descrição do evento apontava que a área reservada para a palestra contava com 240 cadeiras. Às 17h30 em ponto, os convites começariam a ser entregues e, até ter o bilhete em mãos, dividi com alguns a ansiedade em saber se eu estaria entre as 240 pessoas ou não. Consegui. Logo depois, descobri que todo aquele suspense fora em vão. Quase que em uma ode à tão escassa generosidade, o museu optou por acolher todos aqueles que estavam ali há algumas horas na intenção de presenciar o evento.
Nos tempos em que instituições são atacadas por receber nomes como Judith Butler, uma das maiores estudiosas da teoria queer, ouvir uma mulher reconhecida por um trabalho que é um convite ao alumbramento da verdade crua, em um salão preenchido por corpos pulsantes, é, sem dúvida, um sopro de esperança.
Por cerca de duas horas, Goldin apresentou três de seus slide shows (The other side; um slide show inacabado feito em São Paulo, em 1996; e The ballad of sexual dependency) e discorreu sobre sua vida, sobre a verdade pujante do seu trabalho e sobre o lugar que acredita ser importante ocupar nos dias de hoje. Uma conversa informal, inspiradora e, sobretudo, política.
A artista iniciou a conversa relatando a censura que o seu trabalho sofreu em 2011, no Brasil. Em alguns trechos de The ballad... crianças e bebês são retratados desnudos, em ambiente familiar e acolhedor. “Pessoas acreditaram que aquilo seria uma carta à pedofilia, mas é apenas a forma como aquelas crianças eram criadas. O tipo de criação em que acredito… Tudo está nos olhos de quem vê”, apontou Goldin.
Após exibição de The other side, um slide show de fotos de drag queens realizadas entre 1972 e 2006, Goldin comentou sua paixão pelas “queens” (rainhas, como as chama) e a importância que tais rainhas tiveram na sua construção como pessoa e na sua vivência social. Numa época em que a prostituição era condição para essas “deusas” (outro vocativo usado para se referir às suas “queens”), a fotógrafa documentou esse universo sob um olhar cúmplice, sincero e verdadeiro. Em meio às suas palavras, ela observou: “As rainhas e suas vidas eram sobre beleza. Apenas três delas presentes no slide show estão vivas. Não acho justo. Conhecia todas elas e não é justo que tenham ido tão cedo por causa de uma escolha de vida”.
As fotos de Nan Goldin são puro deleite para os ditos voyeurs. Recortes sinceros de uma vida intensa, sem filtro, que só seriam possíveis de registrar com tamanha naturalidade sendo parte de uma relação construída com cumplicidade e confiança. “As pessoas podem confiar em mim. Conheço-as antes de fotografá-las e normalmente me apaixono por elas antes das fotos serem tiradas. Tento transpor as lentes… É quase como fazer as imagens respirar. Torná-las reais”, situou.
Em cada argumento seu, estava a paixão pela fotografia e por documentar a sua vida: “Sempre achei que fotografar a mim e aos meus amigos fosse mantê-los vivos para sempre. Olhar para o meu trabalho hoje me faz ver o quanto que eu já perdi”. A artista também comentou sobre a sua dificuldade em se adaptar ao mundo digital. “Acho que os celulares tiraram a espontaneidade da fotografia. Para mim nunca foi sobre a tecnologia. Não ligo para Photoshop, nem câmeras super modernas. É muito além disso”, observou.
A fotógrafa discorreu sobre a sua preocupação com a crise dos opioides nos EUA e citou a descriminalização das drogas como o primeiro passo para desconstruir esse tipo de cenário. Pontuou o medo que sente em ter um Donald Trump como presidente de seu país e a importância em se fazer resistente em tempos obscuros como esse em que vivemos. Quando questionada sobre o papel do seu trabalho hoje, Goldin dividiu um desejo: “Sinto que o meu papel agora é apresentar o meu trabalho à comunidade adolescente LGBTQ. Principalmente os de rua”.
A pergunta que encerrou a palestra questionava a ligação que o seu trabalho atual - dedicado ao registro de paisagens - teria com o trabalho do início de sua carreia. Com delicadeza e firmeza, a artista respondeu: “A vida muda enquanto crescemos. Nós mudamos. Nosso trabalho muda. Estou registrando paisagens e não vou viver sob as expectativas de outrem. Um crítico poderia muito bem criar pontes entre um trabalho e outro, mas eles não estão relacionados. A não ser pelo fato de que eu continuo viva”.
Viver é, sim, um ato político. Por mais Nan Goldin e pela difusão da sua arte no universo.
Rafa Feitosa é pesquisadora de comportamento e planejadora em comunicação