Curtas

Na ilha

Conversas sobre montagem cinematográfica

TEXTO Cecília Barroso

01 de Fevereiro de 2023

Piero Sbragia transformou em livro o documentário de Julia Bernstein e Vinicius Nascimento

Piero Sbragia transformou em livro o documentário de Julia Bernstein e Vinicius Nascimento

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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Em uma ilha de edição, montadores de filmes lidam com uma realidade: para contar qualquer história, além do muito material que têm em mãos, trabalham com aquilo que não existe. Foi justamente na ausência que surgiu a motivação para Julia Bernstein e Vinicius Nascimento correrem atrás de seu projeto, um sonho que havia surgido em 2012. Ela conhecida por Então morri e Pastor Cláudio, e ele, por Silêncio no estúdio e Meu nome é Daniel, queriam trazer às telonas o trabalho dos que são igualmente fundamentais à criação de uma narrativa. Muito se fala de diretores, atrizes e atores, e até de roteiristas, mas pouco daqueles que dão corpo e conjunto a uma obra. Os que, muitas vezes isolados e íntimos ao material bruto, o lapidam, recortam, costuram, colam e transitam entre universos para construir uma unidade que faça sentido.

Quando Bernstein e Nascimento se veem sem Ricardo Miranda, falecido em 2014, percebem que perderam algo importante e que era impossível adiar mais a realização de seu filme. Eles começam a fazer entrevistas, definir que linha devem seguir e a pensar na forma que darão ao seu filme, assumindo eles próprios a montagem. Surge então o documentário Na ilha, lançado em 2020, com depoimentos de 20 nomes importantes do cenário nacional, entre eles Cristina Amaral, Eduardo Escorel, Karen Akerman, Mair Tavares, Máximo Barro, Márcio Hasimoto e Vânia Debs.

O espectador é apresentado à antiga moviola e conhece os editores em suas próprias ilhas de edição, e a cada um deles é dado o tempo de refletir sobre o seu ofício, mesclando experiências do passado e realizações do presente, sem deixar de falar de influências. Em tela, os depoimentos são ilustrados pelos próprios trabalhos, filmes conhecidos do grande público, Ilha das Flores, escolhido como melhor-curta metragem pela Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema; Cidade de Deus, indicado ao Oscar de Melhor Montagem em 2004; e o recente Bacurau, vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes no ano de 2019.

DA TELA PARA AS PÁGINAS
Pensando em um filme, é como se Na ilha ganhasse um novo formato depois de sua versão final. Passados dois anos, a obra encontra um terceiro montador, que agora vai trabalhá-la de outra maneira e, em uma plataforma completamente diferente e formato diverso, alcançar novos públicos. Em um outro tipo de ilha de edição, pelas mãos do jornalista Piero Sbragia, o documentário transformou-se em livro, agora com sobrenome: Na ilha: conversas sobre montagem cinematográfica (Paraquedas, 2022, 311 pp). O lançamento aconteceu em outubro do ano passado durante um dos mais prestigiados eventos cinéfilos do país, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em um lugar icônico, a Cinemateca Brasileira, e é coassinado por Julia Bernstein, Vinicius Nascimento, Piero Sbragia e Bem Medeiros.

As obras são complementares e têm relevância na historiografia nacional pelo apanhado que fazem, pois surgem como um retrato raro da função, buscando a amplitude e carregando a brasilidade em seu DNA. A essência é a mesma, mas o documentário encontra seu fluxo nos filmes e o livro transcende a tela, ao focar exclusivamente nas pessoas. Em suas páginas, o leitor encontra tanto o material bruto, captado para o filme, como novas inserções, com Idê Lacreta, Alberto Alvares, Tupã Ray, Lucas Gonzaga e Renato Vallone e outros, que tornam o conjunto ainda mais diverso e representativo.


Imagem: Reprodução

Foi a própria Julia Bernstein, sabendo da preciosidade do material que tinha em mãos e com muito do material bruto não aproveitado, quem decidiu transformar as entrevistas em livro e também complementá-lo com novos depoimentos. O livro anterior de Pedro Sbragia, Novas fronteiras do documentário: entre a factualidade e a ficcionalidade, fez a realizadora se aproximar do jornalista e perguntar se ele tinha interesse em embarcar no projeto. Segundo ele, foi um desafio, pois pela primeira vez iria trabalhar com entrevistas realizadas por outras pessoas. Além disso, teria que encontrar uma forma para tantas abordagens e estabelecer uma unidade e um tom para o livro.

“Eu me vi literalmente perdido na ilha”, contou. “Foi quando eu tive o estalo de transformar as entrevistas em narrativas em primeira pessoa. Assim como o Daniel Rezende conta sobre Tropa de elite, quando ele fez uma primeira montagem seguindo o roteiro e uma segunda montagem desobedecendo o roteiro, eu meio que desobedeci aquele formato de entrevista, ignorei as perguntas e escrevi um texto a partir das respostas”, diz. O jornalista explica que, depois disso, foi revisado pelas próprias montadoras e montadores e seguiu todo o caminho regular de revisão.

MONTAGEM À BRASILEIRA
O livro tenta fazer um recorte bem amplo do cenário nacional, com um cineasta e montador guarani e pessoas de todas as regiões do país. O fato de partir do cinema brasileiro, sem dependência ou necessidade de olhar para aquilo que é produzido fora daqui, prezando pela variedade de realidades regionais e estilísticas no filme é um dos grandes destaques do livro. O jornalista destacou o ponto lembrando como Renato Vallone defende a montagem decolonial em sua entrevista, ressaltando a importância de se aprender a refletir o cinema brasileiro de uma outra forma, pensando no modo como se enxergar o próprio cinema, “dialogando com aquilo que o geógrafo Milton Santos falava, ‘com os olhos de cá, e não com os olhos de lá’”, completou Sbragia.

Vale destacar que muito do que existe hoje sobre montagem no Brasil tem uma forte influência internacional. Além de Na ilha: conversas sobre montagem cinematográfica, existe um único livro pioneiro sobre o assunto, escrito no Brasil na década de 1980 por Maria Dora Mourão e do Eduardo Leone, que nunca chegou a ser reeditado e não está mais disponível para as pessoas: Cinema e montagem. A leitura de Na ilha é diferente de tudo. Com atenção na personalidade dos seus e força dos aspectos regionais, a obra passa pela filosofia e a técnica sem se prender a elas e se preocupa com a experiência e a prática, expõe o que cada criador entende sobre a sua arte e a sua relação com os filmes e o seu espaço criativo. Com seu mosaico, preenche uma lacuna aberta onde pouco se conhece sobre a história do próprio cinema brasileiro.

“O Na ilha tinha dois desafios, o primeiro era fugir dessa discussão de montagem filosófica, que a academia já compreende muito bem, e queria evitar um livro muito tecnicista. A gente queria falar de cinema. Então, os depoimentos dos montadores — e são pessoas que montaram talvez os principais filmes brasileiros dos últimos 50, 60 anos, do Máximo Barro, editor de vários filmes de Mazzaroppi, até o Luca Gonzaga, de Marighella, — fazem um panorama do cinema brasileiro e de questões que as pessoas não enxergam nos filmes”, comentou Sbragia.

Separado pelas entrevistas de montadores, o livro destaca as características e métodos de trabalho de cada profissional. É possível conhecer suas histórias de vida, o modo como chegaram ao cinema, suas primeiras experiências, a relação com os filmes e até mesmo a experiências com títulos específicos e alguns realizadores. A forma faz com que percepções fundamentais sobre tempo, ritmo, som e silêncio, música e até a relação com roteiro possam ser descobertas e comparadas com entusiasmo.

Há muito a se perceber, em especial a transformação tecnológica do cinema com o digital tomando o lugar da película, o que revoluciona a produção e abre caminho para novos filmes e outras representações, e o computador ocupando o lugar da moviola. Infelizmente, a imutabilidade de certas tendências ainda está ali também, como o depoimento de Jordana Berg, montadora de muitos dos filmes de Eduardo Coutinho e de outros tantos, como Eami, indicado pelo Paraguai a concorrer a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Internacional, quando fala de machismo. 

CECÍLIA BARROSO, jornalista cultural e crítica de cinema.

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